1865: o jornal O Cearense e o “desaparecimento” dos povos indígenas da Ribeira dos Quixelôs

22/04/2023

Naiara Leonardo Araújo (Doutoranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina/ bolsista CAPES. Pesquisas nas áreas de interesse: cinema e história; cinema e educação; história de Iguatu)

Dedico esta matéria ao povo Kixelô Kariri e, em especial, ao meu amigo e pintor Arivânio Alves que, por meio das suas cores, encanta e rememora sua ancestralidade.

Quero aproveitar a ocasião do último dia 19 de abril, marco de comemoração ao Dia dos Povos Indígenas, para convidar o leitor a refletir sobre os povos originários que habitavam o atual território político do Iguatu. Vocês já devem ter escutado afirmações como “os índios foram extintos”, “eles eram uns selvagens” ou ainda de que “a nossa sorte foi a chegada do europeu para civilizá-los”. Muitas dessas afirmações foram construídas nos primeiros livros de História do Brasil (a exemplo do Varnhagem), nos direcionamentos do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (conforme se vê em Von Martius) e mesmo na forma das leis da recente nação brasileira, ao longo da segunda metade do século XIX.

Esses discursos partem do pressuposto de que não existem mais povos indígenas, ainda que tente pontuar alguns aspectos como “positivos” ou a sua importância na formação do povo brasileiro. No entanto, são esses mesmos escritos de viajantes estrangeiros e cearenses que nos permitem observar quais possíveis grupos indígenas e linguísticos habitavam essas terras. Aqui, recorro à tese do historiador João Leite Neto (2006), que buscou fazer um mapeamento dos grupos indígenas do território cearense por meio da revisão de uma vasta bibliografia produzida a partir da segunda metade do século XIX. É também de sua autoria a imagem que se encontra nesta matéria.

Assim, é possível destacar quais grupos indígenas estiveram na “Missão da Telha”, ou “Aldeia da Telha” (as duas grafias são encontradas) até meados do século XVIII e, um pouco mais escassa, as suas movimentações pelas “freguezias” da Ribeira dos Icós. Candandu, Kixelô, Kixariú (uma parte deles), Kixerariú – ou ainda Kixereu – (uma parte deles), Javô, Kixariú, Akarisú, Kariú e Juká, são alguns desses povos destacados no tronco linguístico dos Tarairiú, que habitavam nas proximidades dos rios Jaguaribe e “Truçu”, conforme elenca Studart Filho(1965) – com ressalva para o povo Juká, enquadrado na sua categoria de “grupos de existência duvidosa”. No trecho da matéria a seguir, do jornal O Cearense, de 21 de novembro de 1865, apenas o grupo juká é mencionado.

“Essas aldeas floresceram, e decahiram pelo mesmo motivo, e os descendentes dos indios foram crusando-se com outras raças, de sorte que poucos hoje se acharam ainda puros; mas em todo caso já confundidos com a massa da sociedade, e considerados cidadãos: os patrimonios territoriaes de suas aldeas foram por ordem imperial mandados incorporar a fazendas salvando as posses que alguns ainda tinham, o que se fez, e ultimamente se tem demarcado pelo engenheiro juiz comissario.

As aldeas dos Trambabes (Almolala) no termo do Acaraú, dos Jucás (Arneiroz) no termo do Inhamum, dos Cariris (Missão Velha, e do Miranda hoje Crato), tiveram a mesma sorte.

As raças indigenas desappareceram successivamente do solo da provincia, apezar de diversos aldeamentos, de maneira, que com verdadeira applicação podia se repetir a respeito d’ellas o que o celebre viajante inglez diz dos aborigegnes da América, que d’elles só restam o céu, a terra, e a lembrança de suas espantosas desgraças.

O facto constante do desapparecimento das raças selvagens da America, principalmente da raça tupica, (de todas a mais insociavel) diante da civilização européa, é um phenomeno que liga-se á uma alta questão social, de saber se essas raças são suceptiveis de nossa civilisação.

O que resta pois hoje d’essas tribus, d’esses aldeamentos, pertence ao dominios da historia, e não a administração, que sobre tal objecto nada tem mais que prove.”

Esses discursos veiculados na imprensa e nas narrativas oficiais são interessados em moldar os símbolos da nova nação: um Estado monárquico (em oposição aos debates sobre República que vem assolando o restante da América Latina), uma fé católica (negando os ritos indígenas e africanos), um discurso de eugenia amparado na miscigenação rumo a uma sociedade branca para, enfim, se tornar civilizada – reconhecer a existência de indígenas era reconhecer que a nação ainda estava longe de ser civilizada. Nesse sentido, o governo local alinhava-se aos interesses nacionais e justificava a “extinção dos índios” amparado num discurso de “índios misturados”, que já viviam sem “distinção” em relação aos “civilizados”. A proliferação desse discurso, e mais a realização do censo demográfico em fins do século XIX (Almeida, 2006), tinha ainda outro interesse: a extinção sistemática dos aldeamentos e “reorganização das terras” para o latifúndio, apoiados na legislação nacional que instaurou a Lei das Terras, em 1850.

Sobre os povos que habitaram o território do Ceará e, especialmente, a missão/aldeia da Telha, chama atenção alguns dos comentários feitos por Studart Filho (1965). No primeiro caso, numa insinuação um tanto lombrosiana, o autor exalta a visão e audição apurada e, para o caso das mulheres, grandes “ancas” e “hiperfertilidade” como heranças indígenas. A respeito dos índios quixelôs, jucás, candandus, quixerariús e cariús, o autor destaca algumas poucas páginas (137, 152-53), nas quais o tom negativo (e de resistência, por outro lado) se manifesta ao tratá-los como “vagabundos” que matavam, roubavam gados e pilhavam as regiões vizinhas; errantes, que talvez devido “à pouca ou nenhuma energia do missionário” fugiam da aldeia, deixando-a reduzida a uma média de “60 homens”. O autor parece julgar as ações dos povos jucás através das relações que estabeleceram com as famílias Feitosa e Montes, taxando-as de “famílias matutas, rivais, que encheram os sertões de nossa terra com seus atos de vandalismo”.

Por fim, destaco ainda que o ano de 1865 foi marcado também pela publicação do romance indianista Iracema, do autor cearense José de Alencar. Esse que é tratado hoje como uma “ficção de fundação” (Sommer, 2004) sofreu, à época, diversas críticas por parte de Machado de Assis, uma vez que este não julgava interessante para a literatura naquele momento a exaltação idílica de povos que não existiam mais.

Como se pode observar no trecho da matéria em destaque e dos autores citados, o Ceará – e o território que hoje pertence à cidade de Iguatu – se empenhou muito cedo nesse discurso oficial de apagamento das identidades indígenas, tendo sido umas primeiras províncias a negar suas existências para se “apoderar de suas terras” e ainda muito recentemente nenhum grupo indígena constava como reconhecido pela FUNAI (Neto, 2006). Felizmente, uma realidade que vem mudando dos anos 2000 para cá, em especial nos governos PT, e que tem hoje reconhecido diversos povos no território cearense, dentre eles o povo Kariri Kixelô, antigo povo da Ribeira dos Quixelôs!

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