1910-15: considerações político-sociais e a culminância na “grande seca” em Iguatu (I)

19/08/2023

Naiara Leonardo Araújo (Doutoranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina/ bolsista CAPES. Pesquisas nas áreas de interesse: cinema e história; cinema e educação; história de Iguatu)

Cresci com as histórias do meu avô que sempre começavam pelo fatídico ano de 1915 e se desenrolava no encontro com Getúlio Vargas e nas suas atuações políticas. Uma das inspirações que me conduziu para o ofício de historiadora, Casimiro Ferreira de Araújo nasceu em 7 de julho de 1915, nesse ano que ele mesmo costumava denominar de “o ano da grande seca”. Entre as contações de um avô para sua neta ainda criança e as investigações pelos arquivos e fontes históricas, convido o leitor a me acompanhar por essa série de matérias (dividida em 4 partes) que propõe analisar alguns elementos importantes para a compreensão do ano de 1915, na cidade de Iguatu.

Seca não era bem um assunto raro nos jornais e correspondências de fins do século XIX para o início do XX. Teve a seca de 1877, que se estendeu até por volta de 1879, a seca de 1889 (à qual já dediquei uma matéria, publicada no mês de março) e a seca de 1900. Mas a seca de 1915 chama atenção pelo tamanho da calamidade pública que assolou o estado, talvez um acúmulo de consequências das secas anteriores, mais uma situação sanitária agravada pela varíola, pelos conflitos políticos, o medo dos cangaceiros e do banditismo, dentre outros aspectos. Assim, para tentar compreender um pouco do cenário vivido pelo povo iguatuense ao longo de 1915 se faz necessário vez em quando revisitar crises e secas anteriores, bem como alguns eventos que se desenrolaram de 1910 em diante e repercutiram no imaginário da cidade.

É do Iguatu o personagem Chico Bento, do consagrado livro “O Quinze”, de Rachel de Queiroz. Personagem que poderia ter migrado, inclusive, motivado por secas anteriores se inspirado nas histórias dos sujeitos reais, indicados nas matérias de jornais. Na narrativa, Chico, sua esposa Cordulina e seus cinco filhos vivem numa fazenda no Logradouro, próximo à cidade de Quixadá. Chico se vê desempregado quando dona Maroca lhe manda soltar o gado, caso não chova no dia de São José (a falta de chuva no dia 19 de março é vista popularmente como um ano de seca). Diante de tal ameaça, Chico entra na fila daqueles que almejam receber bilhetes de trem, concedidos pelo governo, rumo à capital. Sem sucesso, descobre a corrupção daqueles que, motivados pela ambição, fazem da seca um negócio. Chico decide, então, migrar “por terra”, auxiliados por uma burra apenas. É nesse percurso de sua família para a capital que a narrativa se torna bastante dramática. Um enredo que traz ainda a lembrança do famoso quadro “Os Retirantes”, de Cândido Portinari.

Salta aos olhos a cuidadosa narrativa construída por Queiroz e sua proximidade com os diversos documentos que consultei, os jornais, os almanaques do estado do Ceará, os relatórios e falas dos presidentes do estado (endereçados tanto ao presidente da recente república quanto na forma de pronunciamentos feitos na Assembleia do estado). Trata-se de uma literatura que recorre aos aspectos sociais, “não como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno” (Candido: ano, p. 16). Desse modo, “O Quinze” pode ser lido não apenas por seu aspecto ficcional, mas ainda por sua relação documental, presente em diversos momentos da narrativa e nas matérias dos jornais da época.

De acordo com os dados demográficos publicados no jornal A República, ed. 93, de 6 de agosto de 1892, Iguatu possuía 11.933 habitantes. Já no ano de 1922 (conforme matéria publicada no jornal sobralense A Lucta, ed. 516, de 4 de abril de 1922), a população iguatuense girava em torno de 29.190 habitantes. Esse hiato de 30 anos pode ser explicado: 1) pela descrença das instituições estaduais em relação aos dados colhidos – como foi o caso do censo de 1901, considerado pelo Almanach Administrativo, Estatístico, Mercantil, Industrial e Literário do Estado do Ceará como não confiável; e 2) pela não realização do censo previsto para o ano de 1910 com a justificativa de que o país se encontrava em condições especiais no momento, agitado que estava por “perturbações de ordem política” (memoria.ibge.gov).

Para Hugo Victor (1925), esse censo apresentava uma visão pessimista da realidade, argumento que o levou a especular, no seu livro “Ceará – o município e a cidade de Iguatu”, em 33.000 habitantes, sendo 5.590 da zona urbana. Diante de tais dados, e das dúvidas que recaem sobre os recenseamentos realizados, pode-se ter apenas uma estimativa aproximada e uma certa noção do crescimento da cidade de Iguatu.

Nesse sentido, quero retomar um trecho da matéria que publiquei referente à seca de 1889 para um breve comparativo com a seca de 1915. Entre uma e outra seca, um elemento importante se inseriu no cenário de Iguatu: a estação de trem. Se na primeira a fuga para o litoral se dava através de animais, na segunda eles contavam com o trem e a possibilidade, inclusive, de passagem concedida pelo governo. Como visto, a correspondência escrita para o Gazeta do Norte, em 1889 (ed. 59, de 15 de março de 1889), destacava “As estradas para essa capital estão intransitavel á falta d’agua e pasto: não ha animal que faça essa viagem que não chegue cançado aqui ou na Canôa.”

Já o jornal A Lucta, ed. 67, de 11 de agosto de 1915, traz o seguinte informe: “Fortaleza, 11 – Acabam de chegar pela estrada de ferro, do Iguatu’ mais de 1.500 emigrantes que aguardam vapores para o norte e sul. Causa horror a miseria em que se encontram esses infelizes.

O coronel Benjamim Barroso compareceu ao desembarque dos miseraveis, mandando distribuir alimentos aos mesmos.”

Não se pode afirmar que essas 1.500 pessoas que embarcaram pela estação de Iguatu eram todas iguatuenses, uma vez que as cidades vizinhas também desfrutavam desse serviço, inaugurado em 1910. Por esse trecho, o que se anuncia é a situação de “miséria em que se encontram esses infelizes” e a intenção desses que migraram fugindo da seca – rumar para o norte ou o sul do país. A partir desse trecho, é possível conjecturar que a imagem ao lado (presente no grupo Iguatu Antigo, do Facebook, postada por Frank Araújo) foi capturada nesse dia ou em um dia de movimentação semelhante, uma vez que tal cenário se alastrou por meses.

Continua…

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