1971: o roubo da imagem de Senhora Sant’Ana

13/07/2024

Naiara Leonardo Araújo (Doutoranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina/ bolsista CAPES. Pesquisas nas áreas de interesse: cinema e história; cinema e educação; história de Iguatu)

Em janeiro de 1971 uma notícia abalou os fiéis de Iguatu: a imagem de Nossa Senhora Sant’Ana tinha sido roubada. Símbolo da história de Iguatu, a imagem feita em Portugal, foi trazida para as margens da Lagoa da Telha pelo padre João Matos Serra, em 1719. A imagem de Senhora Sant’Ana chegou à região, juntamente com o tenente-coronel Gregório Martins Chaves (considerado primeiro homem público de Iguatu, pelo historiador Wilson Holanda Lima Verde), e deu início a uma ocupação na forma de Missão para catequizar os povos indígenas.

Esta imagem, que em 1971 contava com 252 anos desde sua chegada na região e se tornou padroeira da cidade do Iguatu, foi a 5ª imagem antiga a ser roubada das igrejas do interior do Ceará. As investigações obtiveram tamanho alcance que o caso foi noticiado em diversas matérias publicadas no Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro.

Assim, a primeira matéria, de 25 de março de 1971 (ed. 298, p. 10), mediante informações enviadas por um correspondente de Fortaleza, relata:

“Homem louro furta imagem de padroeira que estava em altar do Ceará há 200 anos […] A imagem de Nossa Senhora de Santana, padroeira de Iguatu, foi roubada da matriz da cidade, onde estava há mais de 200 anos, por um homem louro que se dizia perito em restauração de obras antigas e fugiu num carro com placa de Jundiaí, São Paulo.

O Bispo-Auxiliar de Fortaleza, Dom Miguel Camara, apresentou queixa, apresentou à Delegacia de Furtos e Roubos, dando conta do furto, que foi também comunicado ao Arcebispo de Fortaleza num telegrama do Bispo de Iguatu, no qual se pede a colaboração da arquidiocese na recuperação da imagem.

VENERADA

Avaliada em milhares de cruzeiros, a imagem de Nossa Senhora de Santana é venerada por toda a população de Iguatu, que atribui a ela inúmeros milagres. O homem louro que a roubou dizia chamar-se Franco Romano, ao oferecer-se para retocar as imagens existentes na Igreja.

Durante os poucos minutos em que o vigário se ausentou, depois de lhe ter dado permissão para trabalhar, o ladrão tirou a imagem da padroeira do altar e fugiu com ela de carro. Muitas pessoas em Iguatu são capazes de identificá-lo.

Este é o quinto caso de furto de imagens antigas das igrejas cearenses, todos ocorridos no interior.”

O padre José Landim foi quem concedeu permissão para que Franco Romano trabalhasse na restauração da imagem de Senhora Sant’Ana. Foi esse mesmo padre que, durante a celebração da missa, pediu à população ajuda na busca do ladrão da imagem. Os comerciantes de Iguatu ofereceram, então, um prêmio em dinheiro para quem tivesse pistas que ajudassem a recuperar a imagem.

Padre Landim ainda emitiu um alerta para as demais regiões da Diocese, que se “previnam contra falsos pintores e escultores. É que padre José foi enganado por um italiano que se apresentou em Iguatu como artista, oferecendo-se para restaurar a imagem da padroeira, que tem mais de dois séculos, e fugiu com ela” (Jornal do Brasil, ed. 306, de 3 de abril de 1971, p. 10).

Sobre esse período da história de Iguatu, relembro algumas matérias que publiquei neste espaço no ano passado, com os títulos “1970: a suposta ligação da Diocese de Iguatu com Marighella”, “1970: a relação da Diocese de Iguatu com o Sindicato Rural e o PCB”, “1970: padres de Iguatu acusados de práticas comunistas são editores do jornal A Lucta” e “1971: Iguatuenses enviam cartas para o presidente Médici denunciando corrupção na Prefeitura”. Evoco esse conjunto de matérias a fim de melhor compreender outros eventos e o contexto da cidade de Iguatu quando ocorreu o roubo.

A Diocese de Iguatu era investigada pelo Serviço Nacional de Informação (SNI) por supostas práticas subversivas, por incitar os camponeses na luta armada ou ainda por escrever um jornal de cunho subversivo.

É preciso lembrar que esses são anos marcados pela ditadura civil-militar, iniciada com o golpe de 1964 e endurecida a partir de 1968, com a implementação do Ato Institucional nº 5. A Igreja e os padres eram investigados e perseguidos por defenderem a vida, a população oprimida, e se colocarem contrários às torturas e assassinatos políticos. Nesse cenário, Socorro Pinheiro, no livro “A voz do Pastor – Dom José Mauro Ramalho” (2010) observa: “Dom Mauro mesmo sem deixar claro suas convicções ideológicas, apenas por silenciar, também sentiu rejeições e impedimentos para desenvolver algumas tarefas, em determinadas situações” (p. 80).

Ainda, a matéria publicada no site da Diocese de Iguatu (16 de julho de 2023), “A história do roubo e da recuperação da imagem de Senhora Sant’Ana de Iguatu”, escrita por Luís Sucupira, traz elementos interessantes sobre o processo de restauração a que Franco Romano dizia realizar nas imagens antigas, da galvanização. E mais: como o bispo de Iguatu, Dom Mauro, e o bispo auxiliar de Fortaleza, Dom Miguel Fenelon Câmara, acionaram toda uma rede de comunicação e “órgãos competentes” na busca pela imagem. Provas disso são as matérias que analiso aqui, publicadas no Jornal do Brasil.

Assim, uma das primeiras pistas sobre o paradeiro da imagem de Senhora Sant’Ana foi de que estaria no Piauí. “Um homem com as características físicas descritas como as do ladrão teria pretendido vendê-la. A polícia do Piauí já foi alertada” (Jornal do Brasil, ed. 306, de 3 de abril de 1971, p. 10).

Mas na matéria seguinte, de 13 de abril de 1971 (Jornal do Brasil, ed. 004, p.19), o caso foi solucionado e seu paradeiro era bem diferente dessa primeira pista informada. Como se pode notar, do anúncio de roubo no Jornal do Brasil (25 de março) ao anúncio de sua recuperação, em 13 de abril do mesmo ano, transcorrem pouquíssimos dias. Ao que parece, a feliz notícia se deu pelo apoio dos fiéis iguatuense (pelos já mencionados comerciantes, mas também pelas orações e fé dos iguatuenses) e pela rede de contatos mantida entre os líderes religiosos.

[Continua… Na próxima matéria vamos acompanhar como se deu o retorno da imagem de Senhora Sant’Ana para casa e o que aconteceu com Franco Romano.]

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