Naiara Leonardo Araújo
O debate sobre o patrimônio histórico e cultural da cidade de Iguatu não é recente. No tocante aos equipamentos da RFFSA, por exemplo, já participei ativamente de pelo menos dois momentos, em 2013 e 2016.
Essas ações não foram as primeiras, tampouco obtiveram os resultados almejados. Novamente assistimos a tentativa de transformar os prédios da estação, e ainda a árvore Oiti, em patrimônio histórico e cultural de Iguatu.
Nesse cenário, aproveito para compartilhar com o leitor o trecho de uma matéria publicada em 1984, no jornal iguatuense De Fato, que levanta o debate em torno do patrimônio histórico e cultural da cidade, com foco no espaço físico da COIGUATU. E convido-os a refletir sobre quais lições/críticas podemos tirar desse documento histórico para que possam transformar as tentativas de tombamento de hoje em projetos culturais bem sucedidos.
A matéria escrita por Paulo César Barreto, com o título “COIGUATU UMA PROPOSTA CULTURAL”, foi publicada na edição de nº 1, ano I, de 1º de julho de 1984. Aqui, o autor inicia levantando a questão da ausência de patrimônios históricos e culturais, e a despreocupação com a “memória urbanística” da cidade, para propor que a estrutura física da COIGUATU se converta em um “Complexo cultural” antes que seja completamente desfigurado. Como se pode ler no trecho do documento abaixo transcrito:
“Acredito não ser privilégio de minha profissão o cuidado afetivo com o espaço, principalmente aquele espaço elaborado em épocas passadas, testemunho das peripécias do homem no turbilhão da HISTÓRIA. No entanto, poucas são as pessoas em IGUATU que ousaram uma preocupação com sua memória urbanística.
O bloqueio a esta iniciativa se consubstancia no frouxo critério da ausência quase absoluta de edifícios que remontem, por exemplo, à fase da emancipação política do munícipio (1853), com exceção da fachada da Igreja de Senhora Santana, tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico nacional há décadas.
IGUATU possui um patrimônio secular!
E como definiremos 60% do sistema viário iguatuense, que é tortuoso, amorfo? E as praças, com desenhos irregular e grandes áreas soltas sem vexames delimitativos? Tudo negando a racionalidade, as frias regras da tecnologia.
Aí está o antigo. A sensibilidade espacial legada por nossos ancestrais. Em urbanismo este fato constitui a espinha dorsal dos assentamentos humanos, que é a busca prioritária da comunicação, através das ruas, dos becos, das alamedas, das praças, dos parques, etc.
Essas ponderações não me desestimulam quanto à certeza do espaço único, monolítico que se vinculasse em moldes sociocultural econômico à nossa história.
As instalações da COIGUATU (Cooperativa Agrícola e industrial de Iguatu Ltda.), um conjunto arquitetônico construído em início da década de 30 pelo conglomerado inglês “Anderson&ClaYton” que se propunha ao beneficiamento primário do algodão e que ainda opera com eficácia o “boom” de safras sempre crescentes, sem dúvida, possui todos estes requisitos.
Embora sucessivas ampliações tenham adulterado sua relação de vizinhança, o conjunto original se mantém ileso. Os armazéns, a caixa d’água, a casa de máquinas e o prédio de administração ainda possuem uma importante unicidade.
Dada sua excepcional situação na estrutura urbana, sua proximidade com a praça do Prado (em vias de revitalização), do Centro Social Urbano e do eixo paisagístico do Rio jaguaribe, este espaço possui amplas possibilidades de uma sagração em um Complexo Cultural que abarque atividades artísticas variadas: museu, teatro, cinema, artes plásticas, salas de exposição, de leitura, auditório, etc. […]”
Como se pode notar, o autor tece críticas ao descaso com o patrimônio histórico (que só tem “um patrimônio secular!”, a fachada da Igreja de Senhora Santana), e se manifesta em defesa da valorização afetiva do espaço urbano – ainda que ponha o antigo como “amorfo”, “tortuoso” e de “desenhos irregulares” – e da possibilidade de prédios antigos se tornarem “Complexo Cultural”. Sua proposta cultural para a COIGUATU não difere daquelas pensadas para a RFFSA em 2013 e em outros momentos – guardadas as especificidades de cada projeto, claro.
De tempos em tempos, o debate é retomado e ganha alguma visibilidade na mídia local e /ou estadual, mas nenhuma dessas propostas conseguiram efetivamente se concretizar. Por que? Todas essas ações foram marcadas pela ruptura e não por uma luta articulada e continuada. Os sujeitos envolvidos tampouco somaram sucessivamente e deram maior corpo, pelo contrário, foram grupos que priorizaram seus protagonismos negando as ações dos sujeitos que lhes precederam. Talvez esse seja o momento para o encontro desses diversos grupos, para a escuta ativa das reivindicações e projetos que sonharam implementar, para aprender com as diversas experiências e enfim conseguir pautar um projeto em comum.
Por fim, relembro o trecho de um documento que já analisei em outra matéria desta coluna, que chama atenção para o cuidado destacado às árvores da cidade. Trata-se dos Artigos de Postura da Villa da Telha, publicado em 1857. O art. 7º determinava que todos os moradores da cidade de Iguatu deviam plantar árvores que “produzem sombras” tais como cajazeiras, jenipapeiros e cajueiros e o seu não cumprimento acarretaria em multa de até dez mil réis ou dez dias de prisão. O artigo 9º previa multa ou prisão para quem causasse qualquer dano a estas árvores. E o artigo 10º proibia a derrubada de qualquer árvore frondosa deste município. Ao que parece, para os políticos de 1857 ter árvores frondosas no perímetro urbano da cidade era visto como fator de embelezamento numa proposta urbanística que, se permanecesse, daria outros ares para a população iguatuense respirar hoje. O artigo 8º deste mesmo documento anunciava ainda que a Câmara iria custear a plantação de árvores nas margens da Lagoa da Telha e Bastiana. Quais destas árvores sobreviveram aos gestores sedentos por asfalto? E em tempos de tantas mudanças climáticas, por que não propor novamente que se plante árvores frondosas, parques arborizados ou reservas de reflorestamento?
Como Paulo César evocou a HISTÓRIA, de maneira enfática em caixa alta, evoco-a aqui, a partir dos vestígios deixados pelo tempo, para que possamos repensar que plano urbanístico queremos para nossa cidade. E assim possamos também cobrar dos nossos gestores a devida atenção ao patrimônio histórico, o fortalecimento destes como equipamentos de cultura e a elaboração de um plano de arborização que não só preserve as árvores centenárias, mas que incentive a plantação de mais árvores, como fizeram os primeiros gestores da Villa da Telha.
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