Naiara Leonardo Araújo
Há 18 anos Iguatu recebia a notícia de que o Cine Asa Branca seria reaberto com um novo nome, Cine Telha. Localizado dentro de uma estrutura de shopping center praticamente desativada, no centro da cidade, o cinema poderia ser a esperança para trazê-lo de volta à vida. Mas, infelizmente, isso não ocorreu.
Shopping e cinema encerraram de vez suas atividades e hoje se encontram enterrados sob dezenas de motos que ocupam as vitrines da Honda. A imensidão da janela de cinema limitou-se à extensão que duas rodas podem alcançar. Viajar agora só de moto, ou por meio das memórias que restaram do Shopping e Cine Asa Branca-Cine Telha.
Aliás, só recorrendo mesmo à memória para tentar ter a dimensão da história que Iguatu possui com o cinema. Pois nenhuma de suas estruturas físicas sobreviveram ou foram preservadas.
A iniciativa de 2006 durou apenas alguns meses. Seu entusiasta, Salim Arrais, foi mais um, dentre aqueles que investiram sobre o cinema, a sentir o sabor agridoce de uma paixão transformada em negócio e vê-lo fracassar. Muitos foram os diagnósticos emitidos pelas pessoas nas suas rodas de conversas: (1) os filmes não são bons, ou não são lançamentos; (2) a qualidade de som e imagem é muito aquém daquelas vistas nas salas da capital; (3) os ingressos são caros; (4) é mais fácil alugar na locadora e assistir no conforto de casa do que ir até o cinema, porque; (5) ele está localizado numa área pouco movimentada e perigosa para circular à noite; dentre outros.
Numa população urbana de pouco mais de 60 mil habitantes à época (conforme publicação do IPECE), quantos realmente conseguiam se deslocar para outra cidade em busca de sessões de cinema? Para mim, que contava com apenas 15 anos e vinha de família humilde, esse era um argumento descabido.
Também não era tão simples a aquisição de filmes para exibição. A quantidade de cópias era limitada e os preços para adquiri-lo ainda como lançamento muito altos, fatores que dificultavam a exibição de lançamentos em pequenas salas de cinema do interior ou salas iniciantes. Ainda, sua estrutura física herdada dos anos 1990 foi o ponto de partida para essa tentativa que, se bem recebida, poderia ter tido a oportunidade de renovar seus equipamentos.
Não tenho a pretensão de justificar os diversos argumentos utilizados para explicar o fechamento dessa última tentativa de cinema comercial. Pois o que realmente estava por trás era um fenômeno que acontecia não apenas em Iguatu. Que, gradativamente, através das locações de VHS, DVDs e depois com a inserção dos streamings, reduziram as sessões a pequenos espaços, pequenas telas e ao individual.
Para o cinema, que surgiu junto com o fenômeno da multidão, em fins do século XIX, o esvaziamento das salas de exibição era uma ameaça real. Especialmente para aqueles teóricos mais tradicionais, que só conseguem ver o cinema como um evento, o rito de se deslocar até a sala de cinema e permanecer imerso naquela narrativa, sem qualquer interrupção. A meu ver, é uma ameaça não para o cinema em si, mas para os distribuidores e salas comerciais de cinema que hoje adotam medidas diversas para atrair público, tais como realizar sua festa de aniversário dentro da sala de cinema.
Mas esse cinema que já nasceu massificado, contava no início do século XX com espaços muito diversos para exibição. Com projetores ambulantes, esses primeiros entusiastas ocupavam os espaços de sociabilidades, como cafés, salões e hotéis na capital, ou adentravam o interior do Ceará promovendo sessões onde fosse possível (como relato Ary Bezerra Leite, no seu livro “Memórias do Cinema: os ambulantes no Brasil”). As primeiras sessões não exigiam o silêncio como etiqueta tampouco a sala escura, de cadeiras enfileiradas e atenção total para a tela.
Conforme as salas de cinema eram construídas, modelava-se discursos pautados nos teóricos, críticos de cinema, produtores e distribuidores para tornar o que conhecemos como cinema de bairro o lugar por excelência do cinema. Posteriormente, essas narrativas foram mobilizadas para impulsionar um novo formato – assim como os cafés cederam lugar para os cinemas de bairro, agora estes cederam seu lugar para os cinemas de shopping, divulgados como mais seguros e com mais possibilidades de consumo.
Esse formato – Shopping Asa Branca e Cine Asa Branca – chegou em Iguatu no calor do momento, na década de 1990, pelas mãos do empresário Antônio Nelson Moreno, mas ao que parece o cenário econômico da cidade não era oportuno. Para chegar até o Cine Telha em 2006 era preciso atravessar corredores de um shopping fantasma. De acordo com Emmanuel Montenegro (em matéria publicada no jornal A Praça, em 26/06/2021), a sala de cinema no Shopping Asa Branca ainda recebeu a première d’O Céu de Suely, no ano de 2007, com a participação especial da atriz Hermila Guedes, em sessão gratuita. Ao que parece, houve ainda, sem sucesso, a tentativa de incluí-lo como equipamento cultural da cidade, com a realização de sessões gratuitas.
Agora com o formato da vez, os streamings, os encontros presenciais cedem lugar para o virtual e, nessa configuração, podem alcançar lugares inimagináveis, onde antes o cinema não conseguia chegar. Mas o espaço das sociabilidades, e esse sim necessita efetivamente do contato físico e concreto, não é substituível pelas relações virtuais. Em meio às transformações do cinema e às permanências desses espaços, por que não levar as sessões, como fizeram no início do século XX, aos restaurantes, bares e cafés, escolas e praças públicas, dentre outros? De maneira que, se as pessoas não mais procuram o cinema como espaço possível de sociabilidade, que o cinema possa se instalar no meio das pessoas e construir os laços afetivos que as unem como plateia.
E Iguatu hoje pode não contar com sala comercial de cinema, mas conta com espaços e possibilidades de diversos formatos. O Cine Alicerce, por exemplo, projeto idealizado pela professora Sara Mabel, dedica-se não apenas às exibições, mas ainda ao debate e ações formativas em torno da linguagem cinematográfica. Lembro aqui a importância histórica dos cineclubes para o surgimento dos movimentos de vanguarda (como a nouvelle vague francesa ou o cinema novo no Brasil) e como tal proposta vem não apenas formando plateia mas também realizadores (produtores, diretores, roteiristas, etc.). Do Cine Alicerce o cinema parte ao encontro do povo, nas ruas, nas praças, no Abrigo Metálico, através do Cine Praça. E não perde de vista que o formato de sala de cinema ainda é possível, ao lotar o auditório do campus Multi-institucional Humberto Teixeira para as sessões gratuitas do Cine Bastiana. Hoje a história dos cinemas de Iguatu é não apenas relembrada, mas também escrita com novas configurações, novos sujeitos, e em novas páginas.
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