Nos 48 anos da Vila Centenário, caravana relembra refúgio de moradores atingidos pela cheia de 1974

30/04/2022

Medo, renascimento e luta pela própria sobrevivência. Marcas comuns em histórias daqueles que vivenciaram as consequências de serem obrigados a abandonar seus lares e tiveram perdas irreparáveis e feridas que permanecem abertas ainda hoje. Neste domingo, 30 de abril, completam 48 anos da cheia do rio Jaguaribe. Evidenciamos relatos de famílias residentes da Vila Neuma que diante de um cenário devastador de desapropriação souberam recomeçar, mas sem esquecer-se do passado.

A data marca ainda o surgimento da comunidade de Vila Centenário, construída em meio a multidões sociais e união de pessoas que compartilhavam da mesma dor. A primeira ‘Caravana Dores do Êxodo’ vai relembrar o período e homenagear pessoas que ainda carregam nas memórias aqueles dias. Está previsto que carroceiros da cidade refaçam trajeto da Vila Neuma à Vila Centenário, e cena comum de pessoas que buscavam refúgio, nos mais variados lugares.

No resgate de oito histórias, famílias que adotaram a Vila Centenário como novo lugar de morada, outros optaram por fixar suas essências na comunidade ribeirinha mesmo com o prejuízo. “Neuma, banhando nua nas águas do nosso rio, fez com que o Jaguaribe apaixonasse por ela. Em uma noite de 1974, Neuma metaforizada em Vila, o Jaguaribe a cobriu com toda sua potência e vigor de suas barrentas águas. E dessa união espúria nasceu a Vila Centenário, uma dádiva do céu, com a violência do rio, um presente a Iguatu”, recitou Neto Braga, diretor do departamento de educação ambiental e articulador das homenagens.

Lembranças

Eládio José Ferreira, 83 anos, guarda na memória o número de 432 famílias que partiram da Vila Neuma assim como o nome de alguma delas. “A enchente começou cedo da noite, na frente próximo à ponte férrea, mas não entrou por lá, fez um cerco, entrou na altura da usina do senhor Manoel Alexandre onde hoje funciona um depósito de gás. Quando o dia amanheceu, estávamos cercados pelas águas. O povo começou a retirar as coisas e colocá-las em cima da linha férrea. Naquele tempo não tínhamos nada mesmo. A cama, eu deixei no chão. O colchão, na parede de nossa casa que era de taipa. Saímos de lá eu, a mulher e cinco filhos. Tudo que tínhamos coube na mala. No colégio municipal, passamos oito dias, fomos retirados e colocados no parque de exposição. Eu adoeci e tive que ir a Fortaleza. Minha mulher, de resguardo, ficou com os filhos com muito sofrimento: passaram muita fome, comiam o que o povo dava, quando dava, dormiam muitas vezes com fome. O prefeito da época destinou o terreno. O governador do Estado nos deu uma ajuda para fabricarmos os tijolos. Era tudo de meia. Ficávamos com a metade e a outra metade era doada às mulheres viúvas ou mães solteiras. Cavei, eu próprio, o alicerce desta sala onde moramos. As primeiras quatro paredes levantei com ajuda de um amigo que veio comigo da Vila Neuma, o pedreiro João. Aprendi muito com ele. O resto da casa, construí sozinho com o tempo”, lembrou.

Na época, Marluce Gonzaga de França, 63, trabalhava retirando leite na madrugada com seus irmãos mais velhos e sua mãe. “Mamãe pediu para papai pedir ao patrão para fazer nossa mudança. Como resposta ele disse que deixasse para lá, se o rio aumentasse, ele iria e foi dormir. Quando se levantou às 3 horas da madrugada, as águas já estavam dentro de casa. Aí na sua bicicleta ‘Monark Verde’ saiu em correria em busca do patrão, o senhor Geraldo Chaves Cavalcante, que veio com muita rapidez na sua picape, nos levou em princípio para casa de suas tias Luzia e Benedita, na Rua 15 de novembro, onde por mais de um ano, só saímos de lá depois de nossa casa construída aqui na Vila Centenário, com ajuda do patrão, dos amigos e do mutirão. Aqui não tinha água, nem luz, em princípio, vinha o carro pipa e a luz era a da lamparina”, recordou.

Lourival Ferreira Viana, 87, veio de Lavras da Mangabeira para Vila Neuma no ano de 1969, trabalhava com plantação de arroz, na Penha. Em 1974, perdeu o que tinha, uma casa na Rua dos Inocentes. O rio derrubou, levou tudo, só conseguiu tirar a família. “Tinha umas dez casas lá, o rio levou todas”, disse. “Nos levaram para o Caça e Pesca, ali no Bugi, e lá ficamos, até que o governador Adauto Bezerra resolveu com prefeito Adil Mendonça e nos doaram o terreno para construção de nossas casas. Fazíamos os tijolos em mutirão. Tinha um dinheirinho e tratei de levantar a casa pagando ‘Antônio Acopiara’ que era pedreiro, só não pude colocar as portas, deitava uma mesa no lugar da porta quando anoitecia. Ajuda, só de Deus! Trabalhei de servente, sofri muitos acidentes durante a labuta, até que descobri o jogo do bicho, envelheci com a caderneta no bolso”, afirmou.

A senhora Francisca Cesário de Souza, 103, criou todos os nove filhos trabalhando na roça, ralando e catando algodão, plantando feijão, arroz, fava, milho, jerimum, amendoim, gergelim. “No ano da grande enchente, o rio cobriu nossa vazante, ele levou nós todos. Para salvar alguma coisa, era jerimum, melancia, tudo boiando, o rio carregando e nós tentando segurar. Eu me lembro que meu marido entrou no rio com água até a altura do peito tentando salvar alguma coisa. Mas ele nunca deixou de trabalhar. Era o rio secando e ele plantando vazante, nunca faltou legume verde dentro de nossa casa, toda vida foi trabalhador até o dia em que partiu”, lembrou.

José Freire dos Santos, 73, pai de oito filhos, em 1974 morava no sítio Arara, próximo à Vila Neuma, com esposa e dois filhos. “O rio passou com muita violência. Eu tinha um legume e umas coisinhas dentro de casa, mas tirei tudo. Com ajuda do meu pai e meus irmãos, guardei num alto onde morava papai, mas a lavoura perdi toda, no ano de 1985, eu trabalhava na cerâmica Arara, quando minha esposa mandou me avisar que as águas do rio já estavam em nossa rua, eu vim com caminhão da cerâmica que o senhor Isaías me emprestou, retirei todas as coisas e a família, saí de casa 17 horas, às 21 horas já tinha mais de um metro da água dentro de casa. Fiquei abrigado na cerâmica por aproximadamente uns dois meses, depois voltei, as paredes da casa estavam muito molhadas, tive que destelhar para secar, depois pintar para trazer a família de volta. Minha perda no ano de 1974 foram cinco tarefas de milho, feijão, algodão e arroz. Só tive ajuda de Deus e do meu pai”, lembrou.

Zuíla Martins Teixeira, 67, natural de Cariús chegou a Iguatu um ano antes da enchente. “Passamos o dia brincando no rio numa canoa que havia próximo à ponte. Não acreditávamos no que iria acontecer naquela noite do ano de 1974, a água subiu muito, muito rápido, e fomos tirar as coisas de dentro de casa que já estava sendo invadida pelas águas. Levamos o que podíamos para aquele alto próximo à Igreja Católica, quando voltamos, não deu para retirar mais nada, a água havia coberto tudo, morávamos na rua São Camilo. Meu pai buscou o apoio de um amigo por nome de José Amâncio, e este chegou com o carro, pegou nossas coisas e nos levou para sua casa na rua José de Alencar, mas as águas seguiram atrás de nós, e com pouco tempo já estava também na José de Alencar. Então, meu pai arranjou uma caçamba com a prefeitura e nos mudamos para umas casas que eram chamadas de casas dos Americanos, onde hoje é o Morenão. Passamos lá uns sete meses, até que ganhamos ‘dois chãos’ que correspondiam às duas casas que tínhamos na Vila Neuma. Retiramos tudo que se podia aproveitar, tijolos, telhas, madeiras, das nossas casas, das ruínas das nossas casas. E com este material, trazido em caçamba da prefeitura, construíram duas salas no terreno correspondente a nossas casas atuais. Tenho dois filhos nascidos aqui na Vila Centenário. Eu amo esta comunidade, a Vila ‘Centenária’ é o meu coração, só saio daqui para o cemitério como mamãe e papai”, afirmou.

Maria Cândida de França, 86, ou “Socorro” como é chamada pela devoção de seus pais a santa católica, sempre morou na Vila Neuma desde o nascimento. “Era muita água, não era brincadeira não. Em pouco tempo a água cercou, entrou pelo muro, já estavam na altura de minha cintura, em tempo de levar meus dois meninos. Me agarrei com eles, uma em cada braço. O rio levou tudo, não deu para salvar nada, nem uma colher. A polícia me socorreu, me ajudou a enfrentar a força da água, a casa era de taipa foi embora com o rio. Meu marido tinha uma casa de jogo. Quando soube da notícia, correu para casa, mas não me encontrou mais lá, eu já estava na praça do Hospital Santo Antônio, só com a roupa do corpo e meus dois filhos. Naquele tempo, o prefeito Adil Mendonça, oh! homem maravilhoso, naquele tempo ele se cercou do povo dele e foram procurar local para nós. Deus guarde a alma dele. Fomos para o colégio Adahil Barreto, mas nunca faltou nada, a dona Dulce trabalhava com o prefeito, traziam comidas, roupas e tudo. Eu sofri, porque tive que sair de casa, perdi tudo, mas eles fizeram muito, eu não vou negar. Passamos seis meses na exposição, sempre muito bem assistidos. Quando estávamos prestes a ir para o sítio Canga, Cariús, recebemos um terreno para construção de nossa moradia. Fizemos nossa casa, sem porta, à noite colocamos uns tijolos soltos para fechar, mas aqui sempre foi muito calmo”, disse.

Marinete Pereira Lima, 80, relembra os tempos difíceis do passado e a fuga de duas enormes cheias do Jaguaribe. “Meu marido nunca mais pôde voltar para a roça. Eu, aqui na Vila Neuma, trabalhei sempre de costureira para ajudar a colocar o pão de cada dia na mesa. Meu marido trabalhava em tudo que aparecia, trabalhou como servidor do SAAE, como pescador, como reciclador e por fim, como marchante no Alto do Jucá, foi lá que morreu. Um freguês pediu um kg de carne. Quando ele pegou a carne pendurada no armador e levou para cortar no cepo, caiu, morreu ali, ataque fulminante”, ainda morava na Vila na Rua Paulo Sarasate. “A cheia foi grande mesmo, derrubou diversas casas e até a casa de minha mãe. Foram poucas que ficaram em pé, mas pelo muito que o rio tenha levado, pelo muito que tenhamos perdido, a Vila Neuma me deu mais, pois nos meus 80 anos, além de minha família numerosa ao meu lado, ainda tenho uma venda de ovos, arroz, açúcar, óleo, massa de milho, bolos, biscoitos, bombons, essas coisinhas, e com elas sou feliz”, disse.

Saiba

Naquele ano, a cidade de Iguatu comemorava 100 anos, daí o nome Vila Centenário. Não confundir com a data de emancipação política do município, que transcorreu em 1853. A programação de aniversário da Vila Centenário contará com a celebração de uma missa em ação de graças na Igreja da comunidade, atividades culturais e bolo temático.

A Secretaria do Meio Ambiente, Sustentabilidade e Proteção Animal, vem dando apoio à ação, na ideia de suscitar a pauta ambiental. “O Rio Jaguaribe é um gigante adormecido que de tempos em tempos nos proporciona histórias e lições de vida. Ele merece um olhar especial de todos”, afirmou Mário Rodrigues, titular da pasta.

 

(Com colaboração de Neto Braga)

 

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