“Avivando o juízo ao doce estudo, Mais certo manjar de alma, enfim, que tudo” – Camões
Nós conhecemos a elipse como uma notória figura de sintaxe. Consiste em omitir uma ou mais palavras da oração, mas que ficam subentendidas. E.g: “No mar tanta tormenta e tanto dano.” Neste decassílabo camoniano o autor não escreveu – mas o detectamos – a forma verbal “há” do presente do indicativo do verbo haver.
No entanto, sob certo ângulo teórico, a elipse expandiu os seus domínios para muito além do universo da Estilística. Estudos na Antiguidade (sábios de Alexandria), na Grécia e em Roma vincularam a elipse, e a própria Gramática in tota, à Lógica e à Filosofia. Na Idade Média o preclaro gramático A. Sanchez, da Universidade de Salamanca, desenvolveu um complexo raciocínio sobre tal figura a partir de um verso de Terentius. Vel me monere hoc, vel percontari, puta. Rectum est, ego ut faciam, non ut deterream.O enunciado poderia conter – me Hercule! – até setenta elipses.
À parte os exageros, se considerarmos a elipse com tal abrangência poderemos solucionar casos complexos de análise sintática. Exempla habemus😮 enunciado “é-me impossível” (tópico do nosso Devaneios Vernaculares XVII), o qual traria a impessoalidade do anômalo verbo ser com a consequente ausência de sujeito. O termo “impossível” fica então completamente desprovido de classificação sintática, pois se não há sujeito, como pensar em um predicativo do sujeito? Com a elipse isto se resolve. Literalmente: “isto”, o pronome demonstrativo, é o sujeito omitido. O verbo, claro, torna-se pessoal e lidimamente copulativo. O adjetivo “impossível” é visivelmente predicativo do sujeito “isto”.
A Teoria da Elipse pode, inclusive, solucionar um incômodo processo sintático: a oração sem sujeito. Incômodo porque fere o raciocínio lógico a ideia de uma ação, relação ou paixão verbal sem um sujeito. Verba sunt: actionis, relationis, passionis.Os verbos são de ação, de relação (os copulativos-neutros) e os de sentimento. Todos devem na oração corresponder a um sujeito. Segundo a Gramática, há dois modos de a oração não apresentar um sujeito. Verbos representando fenômenos naturais e os verbos haver e fazer dando ideia de tempo.
Quisquem videmus:de acordo com esta teoria, os verbos representativos de fenômenos da natureza têm, sim, sujeito. Embora elípticos, vêm marcados desinencialmente e conjugados na terceira pessoa do singular. Sic exempla:chove, troveja, amanhece. Os sujeitos são: a chuva, o trovão e o dia. Inclusive, para o primeiro verbo, em inglês e em francês aparece o pronome pessoal nas expressões: it rains e il pleut. Tal pronome, neutro no estágio atual dessas línguas, tem como resquício a forma pessoal do sujeito antigo latino: Iupiter pluvius. (Júpiter chuvoso). Ou seja, Iupiter pluit:Júpiter chove.
A segunda ocorrência é um pouco mais mirabolante, porém não menos patente em relação à presença elíptica. Nos seguintes exemplos: “havia dois anos” e “fazia dois anos”, segundo a Gramática, não há sujeito. Para esta teoria há sim. Nas duas frases o sujeito é o elíptico substantivo “tempo”. Expliquemos. O verbo haver vem do latim habere, cujo sentido era “ter”, “possuir” (este verbo pode ainda ser conjugado com este sentido). O português arcaico usava esta acepção: “eu hei mister”. Nos dois casos os verbos estão flexionados porque há um sujeito, embora elíptico. O tempo “há”, o tempo “tem” dois anos. No segundo caso o verbo fazer, também flexionado, traz a semântica de “agir”, também associada ao sujeito “o tempo”. O tempo “age”, o tempo “faz” dois anos.
Diria o preclaro Cícero: Mirabile videtur! Coisa admirável de se ver. Ou melhor, diríamos, de não se ver. Embora esteja na frase. A Teoria da Elipse não vem negar princípios sacros da Normativa Gramática. Com efeito, ela enaltece-a, na medida em que nos leva a pensar logicamente. Gramática, bom leitor, é filosofia.
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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