LUCIDEZ

15/08/2020

“Dansez; un soir encore usez de votre vie.”

Alfred de Vigny

Era por volta do meio-dia. O longo e ensolarado corredor do hospital, àquela hora, não estava muito cheio.

– Não, Humberto, você sabe que sou clínico geral. E não vou perder a minha hora de almoço.

– Quinze minutos. Só isso. Você vai ver; o caso é muito interessante. Nunca vi um assim.

Os dois nesta conversa eram o doutor Bernardo e o doutor Humberto; este, psiquiatra do hospital.

Caminhavam apressados rumo ao refeitório. Humberto tentando convencer o amigo a ouvir um dos seus pacientes recentemente internado.  Finalmente Bernardo concordou, mas somente depois do horário da pausa para almoçarem.

– Está certo, está certo; assim fica mais oficial. Disse o doutor Humberto.

Passado o almoço, Bernardo fez de tudo para que o amigo esquecesse do convite aceito. Tentou até se esconder. Foi em vão. O doutor Humberto logo veio buscá-lo para irem ouvir o paciente. O caso não parecia ter nada de insólito. Um jovem de vinte e dois anos colhido na rua, inconsciente, maltrapilho, proferindo um discurso aparentemente fora da realidade. As roupas chamavam a atenção pelo aspecto antigo. Mas quem pode entender as idas e vindas da moda? Elas estavam sujas e rasgadas, indicando que o jovem andara bastante pela cidade, certamente a pedir esmolas. Um dos milhares de miseráveis condenados na vida moderna da metrópole.

A sala mais que impessoal de um consultório de psiquiatria de hospital acomodou então os três: O doutor Bernardo mais recuado a um canto, em uma poltrona, e frente a frente, o doutor Humberto e o seu jovem paciente. Este parecia tranquilo, mas muito cansado, o que podia ver-se no olhar um tanto alquebrado e distante. Nada de especial. Bernardo amuava-se por ter concordado em vir. Era dar medicação própria até alguma melhora e depois mandá-lo embora. Quantos casos assim!

– Eu só quero que você me conte aquela parte – disse o doutor Humberto olhando paternalmente para o rapaz – só mais uma vez.

– Sim. (falar parecia dar-lhe alívio e dor ao mesmo tempo) Eu cheguei ao baile um pouco tarde. Mas já havia muitas pessoas, luzes, risos e a valsa tocava. Todos felizes. Era noite festiva. Eu era esperado e saudei várias pessoas enquanto buscava por ela. Estava a um canto, esperando-me também. Vestia um longo vestido azul escuro sem decote algum e mangas longas. Usava brincos da mesma cor, discretos, e o cabelo meio amarrado com fios soltos que pendiam sobre os ombros muito brancos. Era ela. Era ela. Fomos à valsa e quando a primeira quadra acabou ela pediu-me olhando profundamente com os seus grandes e majestosos olhos cor da noite: “Vá buscar flores para mim. São vermelhas; estão lá fora, na varanda.” Eu pensei ser um mimo e não discordei. Deixei-a um pouco no salão e fui apanhar as flores. Voltei em minutos e quando abri a porta de entrada não vi mais ninguém. Tudo estava envelhecido e morto. Tudo deserto, escuro e em silêncio. E eis-me aqui. Não sei por quê. Não sei por quê!

– Está bem, muito bem. (disse o doutor Humberto ao jovem) Era só isso. Agora pode ir.

Um enfermeiro então gentilmente veio buscar o rapaz e o conduziu pelo braço.

“É verdade. Um caso singular”. Foi tudo o que o doutor Bernardo comentou depois com o colega Humberto. Este ainda discorreu por um tempo sobre métodos de tratamento e teorias. Depois ambos voltaram às suas rotinas de trabalho. Porém Bernardo não conseguiu esquecer ao longo do dia o relato do jovem. As frases ditas por ele iam e vinham à mente. O olhar compenetrado e compungido. Os gestos comportados. Era deveras insólita a figura do rapaz.

Mais tarde, à noite, em sua biblioteca, com uma xícara de chá, o doutor Bernardo recompôs toda a cena da manhã. A primeira impressão sobre as palavras do jovem era de extrema lucidez. Nenhuma perturbação na voz ou nos gestos. Havia somente uma certa apatia ou tristeza que emanava do seu discurso. Talvez pasmo ou incompreensão. As palavras são símbolos. Uma linguagem de uma outra linguagem. A moça de vestido azul, as flores misteriosas, toda a festa. Uma plenitude perdida para sempre. Exílio depois.

Nós perdemos algo muito grande no passado. Irrecuperável. Por que transgredimos? O que nos expulsou do baile e nos lançou na queda perpétua?

Até bem tarde o doutor Bernardo esteve entre os seus livros a pensar no rapaz e em sua história. No dia seguinte, como de costume, foi trabalhar. Ao chegar ao hospital, curiosamente, encontrou o doutor Humberto num dos ambulatórios. Imediatamente perguntou pelo paciente do dia anterior.

– Recebeu alta. – disse o amigo – não sei mais dele.

Para onde o jovem teria ido? Um abrigo? De volta às ruas? Que miserável existência cumpriria ainda fora do seu baile de paraíso?

Bernardo esteve sério e triste por toda a manhã. Aquela história não fizera nenhum bem à sua visceral melancolia. À hora do almoço, quando saía sem fome alguma, passou por uma mesa da enfermaria. Havia um grande jarro com flores. Vermelhas e a ponto de fenecerem….

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