“Convosco se defende
Da lei leteia, à qual tudo se rende.”
Camões, ODES
O estudo da regência verbal é um basilar esforço para a compreensão da Gramática. Imprescindível, sobremaneira, para a visualização das sutis relações entre Morfologia e Sintaxe.
Há verdade em talis mater qualis filia (aqui levemente modificado). Todavia, o latim, mater sermo, não nos legou uma total equivalência no que se refere à transitividade verbal. Grosso modo, o Vulgaris Sermo foi extremamente danoso para o quadro verbal das línguas novilatinas. Houve muitas e irreparáveis perdas. O verbo do Classicus Sermo era rico, complexo, morfológica, sintática e semanticamente. Quase todos esses tesouros verbais perderam-se com os varii errores no processo de vulgarização dialetal.
Mesmo no estágio de maturidade do vernáculo (época histórica: século XVI) verificamos desacordo quanto à transitividade dos verbos. E.g: o verbo gostar, do latim gustare, encontra-se como transitivo direto no pulcro Auto da Alma (1518) de Gil Vicente: E tu, Alma, gostarás meus manjares”.
Mais peculiares, porém, são as ocorrências de transitividade do rico latim. Pérolas que perdemos com a “evolução” da língua a partir do Sermo Vulgaris.A sintaxe verbal latina ia muito além da relação dos casos Acusativo como objeto direto e Dativo como objeto indireto.
O Acusativo era prodigioso em Latim. Caso forte, lexicogênico depois para o português. Poderia ligar-se ao infinitivo presente, inclusive dos verbos neutros, formando a singular construção Acusativus cum infinitivo. Vejamos Catão nos seus Disticha: Virtutem primam esse puto (julgo ser a virtude a primeira). Repare-se no verbo copulativo ligando-se à desinência de objeto direto. Havia também o Duplo Acusativo: dois objetos diretos interligados: Te apello consulem.Chamo a ti cônsul. Em português o oblíquo é objeto indireto. E ainda o curioso Acusativo de direção. O verbo “ir” em latim gerando objeto direto. E.g: Rus ibo (irei ao campo) e Eo Romam (vou a Roma).
Examinemos agora o Dativo. Tal como acontecia com o Acusativo, também este caso ocorria em latim com o verbo anômalo-copulativo sum-esse.Assim na construção Dativus Possessivus: similitudo cum homini Deo est.A semelhança com Deus é para o homem. Ainda mais peculiar era o Dativus finis (Dativo de finalidade): Pericles agros suos dono dedit Reipublicae. Péricles deu à República os seus campos (como) presente. Precisamos manter a palavra “presente” (donum-i) como adjunto adverbial na sintaxe portuguesa. Porém em latim era a desinência de objeto indireto (Dativus).
Evolução linguística é pura parvoíce. Há, na verdade, deterioração. O majestoso e belo Latim Clássico dialetou-se com lamentáveis perdas em todos os setores gramaticais. Lamentemos com Camões: “Sustenta-me esta vida tua lembrança.”
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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