Noite adentro

12/12/2020

Naquele momento, não queria que acabasse… Queria fazer parar o tempo no exato instante em que, juntos, desvendávamos um ao outro: corpos, almas, sabor… Somos todos sendas, seja mal ou bem exploradas. Somos mais do que supomos ser.

Alcova modesta e desarrumada, é onde nos aventuramos. Convidados de honra a fim de desbravar, descobrindo sentidos internos em toques de pele. Ao fundo, melodia do grande Gonzaguinha soava fazendo-nos suar.

Alguns tragos, recuperação de fôlego e recomeço. Há de convir que, à uma mulher, quando há sentimento, nada é efêmero ou transitório. E assim seguíamos em nossa amorosa batalha; sem egos inflamados, despidos de pudor e, parafraseando Belchior: “sensual como o espírito.”

Já era madrugada. De onde estávamos, nada se via. Nenhuma ação humana lembrava que existia vida para além daquele aposento. Passadas algumas horas, um modesto raio de sol se fez numa minúscula fresta na porta de madeira. Naquele instante desejei não cumprir qualquer ordem externa, nenhum acordo com a vida, exceto o de estar onde estávamos, onde era o nosso lugar, onde éramos nossos.

Pausa para um cigarro… Deito-me enquanto fumo. O corpo todo era coquetel de sensações: algumas químicas, outras, naturais. Natural como a beleza infinda daquele ser que, enquanto fumo, repousa sonolenta, exaurida e linda. É a cena inebriante de uma menina-mulher. Os olhos pesados, decadentes, me fazem abraça-la e pô-la em meu peito. A luz solar, na proporção exata em que eu não desejava sair dali, fez-se mais intensa, alertando-nos sobre o dia ao qual nos havia preparado. Apaguei o cigarro, ignorei a fresta da porta como quem desvia o olhar a uma pessoa indesejada. Beijei-a na testa (dizem que isso é sinal de respeito, mas não sou bom em signos) e, aos poucos, quase sem perceber, estávamos novamente imersos em nós mesmos, como uma simbiose, espíritos híbridos. Confusão de identidade sobre quem é quem. Ora, a essa altura, que importa distinguir sobre?! Cabia-nos, tão somente, compreender que horas findariam, separando-nos.

Chega ao fim momentos que valem por dias ou até mesmo semanas vãs. O fim de uma madrugada não representa o fim de similar epopeia. Os deveres não são capazes de calcular a importância e a grandeza de quem se permite ser e fazer feliz. Conheço quem não suporta ler estas linhas por não compreender de vida em circunstâncias plenas. Estranham calor e suor, não carregam consigo qualquer empirismo dessa natureza. Nada pode ser entendido a quem habita alma gélida em arcabouço débil.

Agora, já em casa, onde um livro me faz companhia, tomo café em momento de pura euforia introspectiva, sentindo a adrenalina ainda a percorrer o meu corpo, a fazer pulsar veias, mal conseguindo me concentrar na leitura. Ela, nesse momento, dorme profundamente. Descansa para a vida que nos desafia a ser exatamente quem recusamos a todo custo: seres mecânicos. Somos mais carne, somos mais emoção… repito: somos mais do que supomos ser! Ela sabe, eu sei! Sei que seus olhos falam, que sua mão afaga a minha com a mesma pieguice de adolescentes colegiais. Também sei diferenciar seus suspiros e sorrisos.

Colhi na vida embustes e engodos de toda natureza; já tomei cicuta, já pus, por três vezes, fim a minha existência… não êxito em dar cabo de vida medíocre (e, sempre que necessário, darei). Antes, sentia inveja de alguns romances, hoje, o romance do livro lido, sente inveja de mim, da gente. Suas páginas denunciam amor prático, trivial. Cadê a inspiração com a qual nos sentimos parte da narrativa? Onde está a sensação de acreditar que tal literatura poderia ser vivida por qualquer mortal? Eu sei, eu sei!… deveria conter-me ao propor romances dignos de vivacidade… o caso é que não me apetece ser conformista, considerar normal casais vivendo chatices inalteráveis, não sabendo onde se perderam, onde a promessa se extraviou, sem saber o motivo torpe de estarem juntos; filhos, adjacentes, sociedade, comodismo… Deus me livre de tal sina! Quero olhar para a coautora do apogeu da minha vida e, sem receio, dizer-lhe: não negamos o real, aperfeiçoamo-lo!

Agora, já no quarto de tristezas extintas, devolvo o livro à estante, procuro o sono em meio à euforia, sabendo que logo a verei. Que não demorará muito, a fresta novamente prenunciará o início de mais um dia que precedeu, na surdina soturna da madrugada, momentos de indizíveis descrições!

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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