Ainda sobre Clarice Lispector

19/12/2020

Quando escrevi aqui sobre o centenário de Clarice Lispector, ocorrido na semana passada, chegaram-me inúmeras manifestações de enorme apreço pela escritora nascida na Ucrânia e vinda para o Brasil contava ela menos de três meses. Muitos desses leitores (curiosamente homens, em sua grande maioria) diziam o quanto a escrita de Lispector os seduzira desde muito cedo, fazendo parte de um imaginário estético subjetivo que os acompanha através dos tempos. Como um admirador assumido da autora de Perto do Coração Selvagem, livro de estreia de Clarice que considero o melhor de toda a sua obra, confesso que fiquei entusiasmado com o fato de um número maior de homens ter revelado o fascínio exercido pela escritora. Explico-me.

Na minha juventude, eram as amigas que me falavam com frequência de Clarice Lispector, que me emprestavam livros de sua autoria, que citavam trechos de seus livros nas coisas que escreviam, nas cartas de amor, nos trabalhos escolares, nas capas de seus cadernos, e, as mais vocacionadas para as coisas da literatura, discutiam seus romances e contos, não raro deitando em suas análises um domínio de linguagem acerca de Clarice que me impressionava.

Passaram-se os anos, já no curso de Letras da UFC, e podia eu perceber que eram as colegas mulheres que sempre conduziam entre os muitos livros os livros de Clarice, que se diziam imensamente identificadas com o estilo da ficcionista, que a exaltavam pelo que sua prosa de ficção trazia, em níveis poucas vezes alcançado, o que existe de mais íntimo e mais misterioso da alma feminina. Assim, abominando invariavelmente qualquer tipo de preconceito, fui cedendo a precipitar juízo sobre a obra dessa escritora inconfundível, das maiores de língua portuguesa: Clarice Lispector é a paixão das mulheres em termos de literatura. Ledo engano, viria a concluir com o passar do tempo, quando os estudos mais embasados do que se pode definir como obra de arte literária passaram a obedecer a critérios mais rigorosos e mais consistentes teoricamente falando. Clarice Lispector era uma artista, grandiosa e singularmente “autoral”, e produzia, por isso mesmo, uma obra universal, humana, demasiadamente humana, na linha do que professara Nietzsche, não sem razão um dos filósofos mais admirados por homens e mulheres de todos os países que se dedicam a tentar entender o indecifrável mistério da existência.

Em verdade, não é Clarice Lispector uma unanimidade, que não errou Nelson Rodrigues ao afirmar que toda unanimidade é burra, mas é, cada vez mais, com o passar dos anos, uma escritora compreendida pelo que proporcionou de inovação para a estrutura do romance e do conto (para não falar da cronista igualmente original e elegante), para a sondagem do que pulsa no mais profundo da alma de homens e mulheres, pelo uso desconcertante dos recursos da forma e pelo estilo com que tece a urdidura do texto literário.

Já no final de sua vida (Clarice morreria em dezembro de 1977), como para não dar margem aos que a acusavam de indiferente aos problemas sociais do país, num equívoco que se prende a um fundamentalismo esquerdista tolo e sem preparo, abandona ela a inflexão intimista e escreve um dos romances mais lucidamente engajados de que se tem notícia desde a geração de 1930, A Hora da Estrela, cuja tessitura se faz de suor, sangue e lágrimas. Não vou me estender sobre o livro, que já me falta espaço aqui. Dou à própria Clarice a palavra, citando-a em crônica publicada em A Legião Estrangeira, sob o céu sem luz de setembro de 1964, mal começavam os horrores do golpe militar e da ditadura brutal: – “Desde que me conheço o fato social teve em mim a importância maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir ‘arte’, senti a terrível beleza profunda da luta”.

Em 1968, quem atentar a vista para as fotos da passeada dos Cem Mil, que marcaria época nos atos em favor da liberdade no Brasil, saberá identificar Clarice Lispector na cabeça da manifestação histórica. Um outro modo de expor a sua coragem e a sua coerência. Viva Clarice Lispector!

P.S. Feliz Natal aos leitores!

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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