Do lado de dentro de mim

02/01/2021

Nada me deixa mais feliz do que acordar pela manhã e ver um raio de sol entrando pela fresta da janela do meu quarto. Tal imagem daria para ser pintada pelo talentoso artista Ruy Relbquy, cujos quadros nos trazem belamente o cotidiano da vida.

Sinto-me viva ao ver o raio de sol e um ágil impulso me faz pular da cama com rapidez, para cumprimentar o dia.  Este é um prêmio que recebo com muita gratidão. Alegro-me em vencer a escuridão da noite. Vou ao jardim, colho folhas secas enquanto borboletas coloridas voam ao redor de mim numa dança festiva.

Este movimento bonito me faz lembrar Clarice Lispector, “não ser devorado é o sentimento mais perfeito”, no conto A menor mulher do mundo. Tantas coisas querem nos devorar nestes últimos tempos que prefiro não as citar, talvez para manter meu próprio sossego. Lembrei-me também da Esfinge de Tebas, “Decifra-me ou te devoro”, talvez a maior luta na vida seja não ser devorado.

Comecei então a imaginar, ali no jardim, se uma borboleta eu fosse… e me pus a ser uma delas.  Então, eu voei. Havia esquecido da minha primitiva forma insetal, mas não a de um grande e monstruoso inseto, “com pernas finas”, a lembrar A Metamorfose de Kafka. Em minha forma de borboleta, eu tinha asas coloridas e belas, olhos grandes e compostos, nada assustador como o inseto Gregor Samsa.

Dizem que já fomos rios, pedras, árvores… tenho uma sensação de que já fui de tudo. Na minha forma de borboleta, vi o mundo grande, tão grande que minha alma espocou no ar. Voei até o arranha-céu mais alto da cidade. Nunca tinha percebido o tamanho da liberdade, nem seu cheiro e sua cor. Pensei na minha liberdade, que só pode ter a cor de arco-íris e o cheiro que traz uma mistura de odores difícil explicar. Quem me dera ser borboleta eternamente!

Aos poucos meu estado humano retomou sua forma. Na observância de minha lucidez não mais capturada e de minha insignificância muito nítida, fui friamente percebendo meus pensamentos já não mais tão livres. Fui vendo a dor e o sofrimento de tantas pessoas e também a minha. Vi-me mais racional do que minutos antes. Do lado de dentro de mim, tantas ideias e sonhos. Respirei fundo e pensei que já estava na hora de sair do jardim.

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