As desbocadas

06/02/2021

Há uma foto famosa que captura o exato momento em que o escritor Nelson Rodrigues, ao passear por Copacabana, lança seu olhar pornográfico para duas moças de biquíni que lhe cruzavam o caminho. Sim, Nelson Rodrigues: o autor brasileiro que chamou o biquíni de obsceno. Que considerava esse traje feminino um verdadeiro ultraje à modéstia, à vergonha. A vida é feita, caro leitor, de pequenas hipocrisias. Faz um exame do teu coração e verás se falto com a verdade.

Mas volto a Nelson e suas obsessões. Quando ele era garoto, após sobreviver ao surto da gripe espanhola, presenciou um prazeroso escândalo: no Carnaval que se seguiu à gripe, uma mulher dançava toda trajada de odalisca. E pior: expunha o umbigo. Vejam bem: não era qualquer parte do corpo. Era o umbigo! E só isso bastou para que o infante Nelson achasse que ali, naquele momento, tivera ele seu primeiro contato com a nudez feminina.

Às vezes, nos momentos de insônia, trago um cigarro e penso em quem eu traria, caso pudesse, do mundo dos mortos. Comecemos, então, por Nelson Rodrigues. O que acharia o autor de A vida como ela É… se , de repente, tivesse de conviver com dezenas, quem sabe milhares de pessoas usando máscaras?

Imagino Nelson numa topique – a nova versão da antiga lotação – apinhada de gente. Nos dois bancos da frente, duas mulheres cochicham por entre suas máscaras personalizadas.

Nelson repara nos cabelos sedosos… na pele de maçã das moças. Pela postura ereta com que elas se mantêm nas cadeiras desconfortáveis, devem possuir um corpo rijo, forte…

Mas algo o detém. E não é nem o medo de ser pego olhando para elas e de ser chamado de tarado – ele costumava dizer que tarado era toda pessoa normal pega em flagrante. E o que espantaria o homem que chegou mesmo a se autoproclamar Anjo Pornográfico? O que parou seu olhar foi a falta de visão da… boca!

Sim, senhor: é a falta de visão da boca que o intriga. Para ele, só existe agora a beleza da boca. Já não interessa as nesgas de carne, o busto, o quadril “de cadeira”, largo e firme. As pernas grossas que a calça um tanto folgada tende a esconder…

Aquela parte erótica que se esconde, de propósito, na costura frouxa, desalinhada. Nada disso o atrai e cativa seu espírito perscrutador.

O nosso Nelson imaginário conta agora com a displicência do ajuste. Uma hora a máscara tremulará. Ventos, vinde! Solavancos, apareçam! Há uma tensão. Há o receio de a boca não fazer jus à beleza da face…

A conversa cessa pelo enfado. Ambas posturam para frente. Mas Nelson é invencível. Feito um caçador experiente, ele espera a hora certa. E quando ela finalmente chega, quando uma delas dá o lábio à vista, nem sequer há tempo para contemplar: a moça percebe que sua boca é procurada e, como quem fecha um decote, ajusta o pano à cara.

Nelson não se abala. Ele crê que descobriu um segredo milenar que fora ocultado aos sábios e entendidos. A beleza está na boca. Lembra-se de que leu num autor obscuro o seguinte: “O amor entre anciãos deve ser evitado pois não pode haver o beijo”, e segue o tal autor dizendo “… não pode haver o beijo pois as bocas estão murchas. Estão cansadas do muito haver provado e, se violadas, exalam apenas o fel”.

Seria isso verdade? Ou estava certo o escritor latino-americano que pôs seus personagens septuagenários para protagonizar uma cena de amor carnal, com beijo e tudo? De mais a mais, mesmo sabendo o segredo da beleza, ele se vê às voltas com um mundo onde tal beleza lhe é vedada. Mas eu dizia que a moça ajustou o pano à cara.

E é, para ele, o que parece ser: uma cara. Muitas caras que não chegam a ser faces… Caras sem boca.

Desanimado, Nelson cochila. E tem um sonho atroz. Um bando de mulheres vestidas de odaliscas. Elas apontam para ele e, com seus dedos longos, o convidam a se aproximar. Possuem um corpo cuja beleza nenhum Balzac seria capaz de descrever.  Seus cabelos são mais instigantes do que Alencar poderia imaginar em seus devaneios românticos. Sândalos saem de seus corpos e as máscaras que usam… lembram aquelas máscaras das antigas dançarinas orientais. Nelson está embebido de amor. Porém, súbito, elas retiram as máscaras e, céus! Elas não têm boca!! Nelson agora está preso em sua mais terrível peça. Uma peça que ele mesmo não teria coragem de escrever. Seu infame título? As desbocadas.

Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.

MAIS Notícias
O imposto do pecado
O imposto do pecado

Vício. Falsas aparências. Falsas amizades. Degradação. Ilusões perdidas. Fossa. Sertanejo. Brega: na música, nas roupas. Confissões estranhas de desconhecidos etc. Todos os dias tenho encontro marcado com tudo isso. Já me acostumei. A propósito: eu me chamo Hugo. Mas...

Aquela coisa louca que fazíamos
Aquela coisa louca que fazíamos

  Aquela coisa louca que fazíamos. Aquela coisa de virar madrugadas com a orelha no telefone, acariciando apenas as palavras e um sorriso imaginário, sem ver o tempo passar. De acordar e mandar mensagem para saber como foi o sono. Aquela coisa louca que fazíamos...

Ele, sempre ele!
Ele, sempre ele!

Foi num desses dias em que até candidato em véspera de eleições apressa o passo. Dia de testas oleosas e sobrancelhas franzidas. Acordei suando frio, transpassado por um pesadelo que logo se confirmou. Ainda semiacordado, chequei o celular. Quinze ligações perdidas....

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *