Fernanda Araújo*
Onze de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que a COVID-19 se tornara uma pandemia. A velocidade de propagação do novo vírus pelos países e continentes impressionava. Profissionais de saúde pouco ou nada sabiam sobre o tratamento dos pacientes. A elevada mortalidade do vírus no norte da Itália assustava.
Especialistas em saúde pública e epidemiologia afirmavam: era preciso diminuir o contato social para que os sistemas de saúde pudessem ter tempo de se organizar para a tragédia que se anunciava. Por se tratar de um vírus respiratório, imaginava-se que, a exemplo da epidemia do H1N1, as crianças e as escolas fossem pessoas e locais de grande superdisseminação viral. Em março de 2020, cerca de 90% das escolas estavam fechadas ao redor do mundo.
Mesmo com 1 século de diferença, muitas semelhanças eram descritas entre a pandemia da COVID-19 e a pandemia da gripe espanhola, datada de 1918. Uma grande diferença, porém, emergia: a grande evolução da ciência nestes últimos 100 anos. Durante vários meses da pandemia do século XX, não se sabia sequer por que as pessoas estavam morrendo. Já na atual pandemia do século XXI, antes mesmo de estar presente em todos os continentes, sabíamos não apenas que um vírus respiratório estava causando a doença, mas o seu DNA estava sequenciado.
Enquanto em 1918 restava aos humanos pedir ajuda aos Deuses, em 2020, uma força-tarefa científica internacional assumiu o protagonismo. Era a ciência e não a religião que poderia nos salvar. Desta vez, nosso maior desafio não era como aprender o comportamento do vírus, como desenvolver tratamentos eficazes, como criar vacinas, nossa maior carência era a de líderes. Vários exemplos de lideranças negativas surgiram no panorama internacional.
Em pouco menos de 2 meses, a ciência começava a mostrar que, ao contrário da pandemia do H1N1, as crianças não eram superdisseminadoras do vírus, e que as escolas que seguiam protocolos simples eram ambientes seguros. Menos de 60 dias após o fechamento, a maioria das escolas ao redor do mundo já estavam abertas, embora a maioria dos países ainda estivessem adotando algum grau de restrições à circulação de pessoas. Durante todos os últimos 12 meses, um incontável número de publicações científicas já afirma com veemência: crianças adoecem menos que adultos, transmitem menos que adultos, crianças saudáveis dificilmente apresentam casos graves da doença, crianças não são superdisseminadoras, escolas com protocolos são seguras, a abertura de escolas não aumenta a transmissão comunitária da COVID, o fechamento de escolas não diminui a transmissão comunitária da COVID e que é possível sim permanecer com escolas abertas mesmo durante os picos de transmissão. Hum ano sem escolas no Ceará, não é ciência é crime.
Um clamor se formou em uma parcela de professores da rede pública, em sua maioria ligados a seus sindicatos, de que não seria possível voltar à sala de aula, enquanto toda a categoria não fosse vacinada. São uma minoria vocal. A quem serve esta liderança? A maior parte dos professores deseja seguir cumprindo sua missão de educar e cuidar de nossas crianças. Compreendemos a importância da vacinação, acreditamos que apenas ela irá nos devolver nossa liberdade perdida, defendemos a inclusão de profissionais da educação entre as prioridades do plano nacional de imunização. Entretanto, a mesma ciência que produziu vacina em tempo recorde na humanidade já afirma: profissional da educação não contrai a COVID-19 em maior percentual que profissionais de outras áreas. Se todos podem, devem e precisam voltar ao trabalho antes mesmo de vacinas, por que essa categoria de profissionais de uma área tão essencial clama por privilégios? Não podemos fechar hospitais porque os profissionais da saúde adoecem e morrem mais da COVID-19, assim como, a luz do conhecimento científico atual, não poderíamos manter as escolas fechadas.
Entre nações com melhores desempenhos no ranking do PISA, existem as que nunca fecharam escolas (Suécia) e, dentre as que fecharam, o país o fez por mais tempo, passou apenas 90 dias com instituições de ensino parcialmente fechadas (Canadá). Aqui no Ceará, no próximo dia 18 de março de 2021, completaremos 365 dias de escolas fechadas totalmente ou parcialmente.
Respeitadas instituições internacionais, como ONU e UNICEF, já emitiram diversas notas sobre a tragédia que atinge milhões de crianças e jovens que estão fora da escola. A parcela de crianças vulneráveis é ainda mais prejudicada por esse fechamento prolongado. Um relatório recente do Banco Interamericano de Desenvolvimento afirma: há aumento de evasão escolar, desnutrição, violência doméstica, abuso sexual, gravidez precoce, ansiedade, depressão e trabalho infantil secundário ao fechamento das escolas. Sem falar nas perdas pedagógicas que podem ser irreparáveis e levar a redução da expectativa de vida, da renda média dessas crianças no futuro e a um enorme impacto negativo no PIB das nações.
É inacreditável que mesmo diante de todas as evidências científicas sobre segurança do ambiente escolar, dos inegáveis impactos pedagógicos, sociais, emocionais e econômicos do fechamento prolongado das escolas e do fato de educação ser um direito básico constitucional que as escolas no estado do Ceará se encontrem fechadas há 1 ano.
No contexto político estadual, decisões que inicialmente se baseavam predominantemente nos critérios técnico-científicos de competentes profissionais da secretaria estadual de saúde, em poucos meses, passaram a sofrer interferências externas (interesses políticos, sindicatos, dentre outros), ignorando a ciência.
A minha maior reflexão atual é: será que, ao integrarem o comitê da COVID no nosso estado, executivo, legislativo, judiciário e ministério público perderam suas independências nas decisões e deliberações sobre a pandemia? A quem nós, cidadãos, poderemos recorrer quando estivermos diante de uma decisão desprovida de embasamento científico ou quando nos sentirmos lesados? Seria o Comitê da COVID do Estado do Ceará o maior exemplo de emparelhamento da história do nosso governo estadual? Quem poderá nos ajudar?
O negacionismo da ciência se faz presente em todas as esferas de governo. Nossos líderes não deveriam debochar das vacinas, assim como não deveriam debochar da educação. Aqui cabe ainda uma corresponsabilidade dos nossos indivíduos. Todos acham educação importante, mas será que realmente nossa população considera educação essencial? Acredito que não é o governo/estado que resolverá essa equação, é a sociedade civil organizada.
Como mãe de 3 crianças, como médica e doutora em ciências, como cidadã estou há meses lutando pela reabertura das escolas públicas e privadas no nosso estado. Movo, desde agosto de 2020, uma ação popular contra o Governo do Estado do Ceará e a prefeitura de Fortaleza que pede o retorno imediato das atividades presenciais de ensino na capital. Esta ação encontra-se atualmente engavetada no Tribunal de Justiça do Estado, cuja atual presidente é um dos membros do Comitê da Covid. Sou uma das fundadoras do movimento Escolas Abertas Ceará que tem atuado diuturnamente, nas diversas esferas, tentando sensibilizar autoridades sobre a urgência da retomada das aulas presenciais. Dentre as reuniões recentes, fui recebida na secretaria de educação do estado. Uma afirmação de uma das líderes presentes reverbera incansavelmente em minha memória: “não posso discutir sobre esses artigos científicos que você diz que falam sobre a segurança em escolas, porque essa não é a minha área.” Tirem suas conclusões sobre essa afirmação.
Dentre muitos desinteressados e alguns oportunistas, encontramos nessa luta alguns parlamentares dispostos a, assim como nós, defender a educação. Há projetos de lei estadual e municipal, em tramitação na Assembleia Legislativa do Ceará e na Câmara Municipal de Fortaleza, que visam tornar educação atividade essencial. Há uma PEC no senado engavetada desde 2016 que trata do tema. Infelizmente a política não caminha na mesma velocidade do pedido de socorro das famílias e da sociedade. É uma luta hercúlea, sofremos diversas derrotas a todo instante, mas nosso propósito não nos permite desistir: educação é essencial e lugar de criança é na escola.
*Mãe de 3 crianças, Fundadora do Movimento Escolas Abertas Ceará, Médica Anestesiologista e Doutora em Ciências
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