Sempre lamentei a falta de trens em nossa cidade. Dizem que não há nada mais poético e melancólico que o tamborilar das gotas da chuva na superfície de um trem.
A estação de nossa cidade foi inaugurada em 1910. Numa reportagem da época, lia-se: “A ponta dos trilhos da E. F. de Baturité chegou a dois quilômetros da cidade de Iguatu. A estação desta cidade, cujas obras já estão quase concluídas, será inaugurada no dia 5 de novembro próximo”.
Mas à frente o jornal trazia a história curiosíssima de dona Federalina, uma mulher que, segundo a matéria, era “… Corpulenta, medidas avantajadas, quadris largos, rosto cheio, bonita – diziam, trocou a liteira pelo cabriolé (espécie de charrete), e, depois de velha, estranhamente, começou a andar a cavalo, inspirando uma crônica ao juiz Álvaro Dias Martins, assustado com a vitalidade da velha cavaleira”.
Tenho muito respeito por velhas cavaleiras, assim como o tenho por cavaleiras velhas, mas essa história trouxe-me à memória uma outra. E se o juiz ficou impressionadíssimo com a valentia na terceira idade, ao ponto de render-lhe uma crônica, estou inclinado a render maior homenagem à valentia do amor na primeira inocência.
No dia em que voltou de uma longa viagem de férias, ela, que se chamava Lorena, trouxe um punhado de cartas de amor – ainda peguei uma época em que se escreviam cartas de amor. O rapaz, que atendia por Dagoberto, leu as trinta e uma cartas com a atenção de quem lê um clássico da literatura universal. Era ano bissexto.
Ela, ao ver a alegria que irradiava no rosto do rapaz, disse-lhe: “Escrevi todos os dias para você como se estivesse à beira da morte”. E ele, tal qual na história do bruxo que encontrou o segredo da felicidade num par de botas novas, de súbito teve a revelação: o amor é um estar sempre se despedindo.
Conta-se que, a partir daquele dia, eles passaram a frequentar a antiga estação de nossa cidade.
Ficavam vadiando aos fins de tarde; olhavam para as antigas bitolas, cheias de ferrugem e ervas daninhas; fitando-se um ao outro, inventavam histórias que poderiam ter acontecido ali, histórias de amantes, de despedidas, de adultérios, de crimes… escreviam páginas e páginas, cheias de sangue, suor e poeira.
Já cansados, voltavam numa bicicleta surrada que ele havia comprado com seu salário de fome.
Era-lhes totalmente estranha a ideia de despedir-se de alguém para ficar.
Criaram um reino para si; um reino longe de conexões virtuais, de celulares, de roteadores, do nosso mundo, enfim.
Muita gente em nossa cidade torcia o nariz para o casal; uns achavam que estavam se drogando na antiga estação, como era comum acontecer durante à noite. Outros achavam que se tratava de algum desafio ao pudor público, alguma tara em sentar-se em meio a ruínas, escombros e pichações; já outros, de mente mais moderna, achavam que era apenas perda de tempo.
Isto durou por um ano. Não revelo aqui os detalhes do fim, pois geralmente as histórias que imaginamos dos finais alheios falam muito mais de nós mesmos. Fala-se de uma carta que ela teria enviado mesmo estando na cidade, para honrar a história deles. Mas não sei se a fonte é segura. Relato apenas este fato: eu mesmo o encontrei muitos e muitos anos depois, ainda aqui em nossa cidade.
Soube que ele evitava o assunto. Procurei abrir caminho mencionando um incêndio recente na estação. Ele baixou os olhos… e soube naquele momento o que eu queria saber, como se me lesse. E disse, como se sua voz estivesse fundida numa voz antiga, como se narrador e personagem estivessem consubstanciados:
“Não há como ir; é preciso voltar”.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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