“Poliamor” perdido

19/03/2021

Ela tinha um pensamento anárquico. Ele, conservador. Não obstante a similaridade das desconfianças com relação ao Estado; da descrença ante o establishment, volta e meia divergiam sobre essa ou aquela medida adotada pela ação política da vez.

Passavam horas lendo, juntos na cama ou não, os nossos autores prediletos. Muitos deles (os meus e os dela) não são de maneira alguma conciliáveis, já outros, sim, havia completa harmonia entre suas ideias sobre Economia, Ética, Moral e Filosofia. Ela era mais flexível: gostava da maioria dos teóricos conservadores. Já ele, raramente encontrava bom senso nos “órfãos da pátria”. Talvez o francês Étienne de La Boétie, no seu livro “Discurso da servidão voluntária”, tenha sido o autor simpatizante do anarquismo, do qual mais o agradou… Ou melhor, do qual menos discordou.

Ao contrário da maioria dos casais convencionais, não divagavam muito sobre sentimentos piegas. Embora, claro, como todo ser humano em uma relação sentimental, de quando em quando esse tema se fazia presente, ainda que sem assiduidade. Preferiam mesmo era falar sobre política. Gostavam mesmo era de assistir aos debates, aos convidados políticos dos programas como o Roda Viva ou Os Pingos nos Is. Enquanto bebiam, assistiam e criticavam, comentavam e opinavam sobre o que cada um pensava dessa ou daquela questão.

Se conheciam a menos de cinco anos, mas pareciam terem se conhecido desde a infância. Seguiram o namoro do “poliamor” (política + amor) até pouco tempo atrás. Mas já não mais estão juntos. As divergências tornaram-se incompatíveis, insustentáveis. Ele desfiliou-se do partido. Ela também. Tudo lembrava o outro. Pararam de assistir aos programas e debates políticos. Tornaram-se descrentes, agora, além do estado, do romance, do amor, do outro…

Despiram-se dos vícios um do outro. Ela rasgara o pôster que continha o símbolo anarquista, já ele, guardou todos os livros do Mises, Burke e cia na dispensa, para não mais lê-los. Não gostavam mais do que eles mesmos apreciavam, por achar que isso fazia lembrar o ex-cônjuge. Passaram dias noites sem beber, evitando assim uma possível recaída. Os números foram deletados dos seus respectivos celulares, mas não de suas cabeças duras.

É engraçado como quem está por fora enxerga os fatos por uma perspectiva completamente diferente da vivenciada pelo ex-casal. Certa feita ouvi o jovem relatar que esquecera alguns livros na casa dela, mas que, por orgulho, não iria procurar recuperá-los. Se eu gostasse de dar conselhos, diria que ambos procurassem rever os seus conceitos e decisão quanto ao término. Só em uma pessoa não ser uma chatíssima criatura lacradora, já vale a pena conviver. Não disse isso, mas deixei nas entrelinhas…

Da última vez que soube notícias deles, disseram-me que não reataram, e que conviviam com pessoas chatíssimas. Eu bem que tentei alertar ao rapaz… Um mundo se perde para um universo de caos lhe tragar. Nesse caso, tragou a ambos….  Uma anarquizou o amor, o outro conservou as feridas abertas.

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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