A saudade que não tem nome

17/04/2021

É a imagem na mente que nos une aos tesouros perdidos, mas é a perda que dá a imagem. (Colette)

Já do hospital, em que viveria sua lenta agonia, escreveu-me uma longa mensagem pelo WhatsApp. Dizia-me como eram numerosos os exames a que o submetiam: tomografias, ressonâncias magnéticas, coletas de sangue de veias e artérias, “a mais dolorosa do mundo”, foi como se referiu a este procedimento. Mas, lhe era próprio, como quem soubesse tirar leite de pedras, agarrava-se ao que pulsava de alegre no bom coração: “Ainda bem que me deixaram ver o meu time jogar!” Vira na tevê a vitória do Flamengo.

Ressaltava o carinho que vinha recebendo da companheira Beta, do irmão médico, Paulo, e da nora Aline, também médica; dos filhos Rubens, Luciana, Cesinha; da irmã Ângela Gutiérrez, e dos amigos, a que soube cultivar como ninguém. Terminava a mensagem, o valente guerreiro, como era próprio dele, repito, com uma declaração de amor à vida, materializando em palavras a sua disposição de festejá-la como sempre fez, ‘bon vivant’ incorrigível que soube ser, de modo a um só tempo simples e elegante: “Quando sair daqui, quero uma comemoração especial!”

Li sua mensagem e, ato-contínuo, respondi-a, admirando sua coragem, sua galhardia, seu jeito gostosamente indisciplinado de tocar os dias.

Quanto a mim, sabia do vírus traiçoeiro, do quanto era improvável o derradeiro combate, a brutalidade do inimigo implacável. Doença covarde, dizia para com meus botões, que afasta os amigos na dor…

Mas era tanto o seu destemor e tamanho seu otimismo, que me deixei levar, antevendo o momento do reencontro regado a rum com coca, o papo descontraído e o fino jazz: “Já estou escolhendo o lugar, Cesário!”, tratei-o assim, como o fazia sempre, na intimidade, e retornei a mensagem, que, agora estou certo, não pôde ler.

“Vai tirar de letra!”, recompus o entusiasmo e me dirigi ao computador para lhe dedicar o romance que acabara de escrever: “Para César Rossas, meu amigo e irmão”.

Durante os mais de sessenta dias de sua luta inumana, repassei muitas vezes em revista a nossa amizade, as nossas temporadas na Taíba ao lado de Ticiana e Beta, de dona Ignez, cuja atenção e meiguice, disputávamos como um privilégio, entre pilhérias e provocações: “Um a zero!”, dizia um ao outro, como se acabasse de marcar um gol, exultante com o primeiro gesto de carinho de que fosse objeto pela grande Ignez.

Passei na tela das retinas os muitos filmes de nossa convivência, os bons momentos em Iguatu, no Cariri, no Rio de Janeiro. Nos bares da vida, enfim, entre chopes e cubas-libres, jogando fora a boa conversa sobre cineastas e compositores de nossa predileção, cúmplices do talvez ou do quem sabe com que procurávamos compreender o incompreensível da existência humana.

Culto, no sentido menos acadêmico do termo, falava com desenvoltura de cinema (era apaixonado por Woody Allen), de música popular brasileira e do jazz, do free-jazz, do jazz pós-moderno, comentando com sensibilidade a gênese de clássicos impagáveis de Louis Armstrong, Duke Ellington, Stan Getz, John Coltrane e tantos outros.

Enquanto escrevo este texto, recebida a triste notícia, a propósito, é como se o visse, entre um gole e outro, aguçar o ouvido para o som e o fraseado da melodia que vinha de Sarah Vaughan, a quem adorava ouvir.

De uma vez, no Rio, fechadas as cortinas, leva-me a conhecer o primo Aderbal Filho e a mulher, a atriz Marieta Severo. A uma dada altura, com a doçura de artista genial e pessoa maravilhosa, Aderbal puxa-me a um canto para dizer do “Cesinha, o primo querido”, e revelar, mal contendo-se em risos, algumas de suas travessuras memoráveis dos tempos de adolescentes.

“Estou tão felEz!”, era como, trocando desavergonhadamente o “i” pelo “e”, numa das muitas corruptelas com que recriava a linguagem ao seu modo irreverente de encarar as coisas, comemorava a eterna novidade dos amanheceres – e o sol efusivo que trazia, invariavelmente, dentro do coração-menino.

Deu-me lições o bom amigo. Era forte e grande, mostrando-se, aos olhos de superfície, frágil e pequeno. Se temos o essencial, era seu o exemplo, por que ir-se em busca do supérfluo, do que tira do homem a sua humanidade? E ríamos, do alto de nossa “superioridade”!: “… me são simpáticos os homens inferiores, porque são superiores também”, mais de uma vez pediu que interpretasse Pessoa, o poeta português. Isso tudo, diga-se em tempo, sem jamais perder a postura nobre, uma de suas marcas fundamentais.

Não haverá o reencontro. Não haverá o “Ah, é assim?”, expressão infalível à frente da mesa posta, o copo na mão e, meio moleque e meio guloso, o olhar derramando luz sobre as iguarias.

Não haverá o blues, não haverá o jazz; a playlist que lhe preparei, não tem mais sentido. Bergman e Kurosawa, Antonioni e Fellini, Chico e Caetano, não estarão…

Não, não haverá o braço forte abraçando amigos. Não haverá o inseparável chapéu à Tom Jobim, a camisa listrada, a velha bermuda azul. Os sapatos sem meias, o tênis cinza, não haverá. Não haverá o exemplar da Carta Capital sob o braço, a estrela branca sobre o fundo vermelho na capa da revista, não haverá. Não haverá o amor pulsando pela mulher amada, o sonho de um mundo melhor, de um Brasil mais justo e mais livre…

Não haverá o andar titubeante depois do rum, o rosto cansado e terno, o ‘barrigão’ propositalmente estufado do vovô irreverente, brincalhão… Não haverá.

Haverá a ausência, a cadeira vazia, a espera inútil, o silêncio que se pode escutar de tão profundo. O silêncio que abre o peito e faz escorrer o pranto. Haverá a saudade que não tem nome.

Meu grande amigo e irmão.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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