Para o bem ou para o mal, sou crítico de extração formalista sempre que a obra de arte é objeto de pauta. Isto significa, entre muitas outras perspectivas de análise, que sempre me empenho em separar a obra do seu autor, na contramão do que fazem os adeptos da crítica sociológica ou psicanalítica, para os quais, é recorrente, vida e obra se misturam, mesmo quando, na ausência de evidências, a tese se sustenta em simples interpretações.
Por conta disso, muitos equívocos ganharam as páginas dos livros: não raro se defendeu, por exemplo, que o ciúme delirante de Bentinho devia-se a um conflito psicológico de Machado de Assis, cujos atributos físicos e problemas de saúde o colocavam em posição de inferioridade diante da mulher, Carolina, reconhecidamente culta (apresentou ao marido os grandes clássicos e lhe ensinou o francês e o inglês), bela e oriunda de uma estirpe familiar europeia bem aquinhoada.
Na ânsia de se justificar o injustificável, leu-se mal a biografia do autor ou mesmo o seu último romance, Memorial de Aires, em que Machado, numa hipótese aceitável, teria projetado sua vida matrimonial numa perspectiva de exaltação do que teria sido seu casamento com Carolina Augusta Xavier de Novaes: harmonioso e feliz. Ao que se soma, de modo explícito, o soneto A Carolina, uma das peças poéticas mais comoventes de que se tem notícia no Brasil literário, e que, ao contrário do que propaga essa equivocada leitura crítica, dá a ver o sucesso da história matrimonial do autor de Dom Casmurro.
Outro viés do problema, a propósito, diz respeito à “cultura do cancelamento”, tão em voga nestes tempos problemáticos, tema reaquecido por denúncias contra Blake Bailey, biógrafo do prestigiado escritor americano Philip Roth.
Acusado de crimes sexuais, Bailey vem sendo recusado pelo mercado pouco depois de Philip Roth: a Biografia ser aguardada como aquele que seria o fenômeno editorial do ano. Bailey defende-se e diz tratar-se de acusações “falsas e dolorosas”. O desastre, no entanto, já ocorreu, e os prejuízos, financeiros, literários e morais, são incalculáveis.
Uno as pontas do laço e me ocorre lembrar de quantas produções de qualidade superior teríamos sido privados, ontem e hoje, não se tivesse separado vida e obra nos mais diferentes campos: Aristóteles, Heidegger, Schopenhauer, Shakespeare, Ezra Pound, Céline, Caravaggio, Bergman, Woody Allen, para falar de uns poucos, estiveram assumida ou disfarçadamente envolvidos com práticas no mínimo questionáveis, quando não deploráveis do ponto de vista ético.
A obra dessa gente, todavia, terá contribuído muito mais para a construção de um mundo melhor e mais belo do que se pode imaginar, o que não significa dizer que os esteja julgando figuras inimputáveis. Antes pelo contrário, que tenham ou devessem ter pago por seus crimes é fato incontornável.
O seu legado intelectual e artístico, no entanto, deveria ser julgado única e tão-somente pelo que contribui positivamente na busca de alternativas de ação nas horas difíceis, pelo que dizem da condição humana, pelo que exploram, muitas vezes à perfeição, sobre os seus conflitos mais profundos e muitas vezes irreveláveis.
Ao lado disso, na esteira do que professou Dostoiévski, também ele personagem central de uma vida marcada por contradições, pelo que nos fazem crer que a Beleza haverá de salvar o mundo.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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