“E os olhos, cansados e traídos, começavam a mostrar-lhe o mundo triste dos outros” Miguel Torga
Foi difícil para Ricardo Gaspar, comerciante de vinhos em Lisboa, embarcar no paquete Boa Esperança naquela límpida manhã de 1756 rumo ao Brasil. A esposa, os dois filhos, os parentes, todos apreensivos com a viagem. Ficaria ausente por uns dois anos. Ia consolidar os negócios na Colônia.
Embarcou. E tudo seguia normalmente na jornada através das vagas. Bons ventos, céus serenos. Ricardo fizera até amizade com uns brasileiros que voltavam para a terra deles. Boas palestras. Almoçara também duas vezes com o capitão; homem sisudo, de poucas palavras. Tomar sol pela manhã, jogar xadrez ou gamão à tarde, cear pouco e dormir cedo. Era a rotina de Ricardo no barco.
Mas nunca saberemos como os Fados se precipitam. Como o Imponderável se manifestará. Aquele crepúsculo de domingo, todos a contemplá-lo da amurada do paquete, não prometia tempestades. Talvez só a brisa estivesse um pouco mais forte. Foi imperceptível.
Ricardo Gaspar acordou em sua cabine já com o pânico generalizado. Ia a pique o barco. Questão de tempo. Negros os céus, trovoada, raios e muita chuva. Não se sabia por que o barco fazia muita água. Os botes não desceram e tudo foi muito rápido. Gritos e enorme desespero.
Agindo por puro instinto, Ricardo agarrou-se ao que podia. Sequer passou-lhe pela mente ajudar alguém. Pensou em salvar-se. De repente viu-se sozinho em meio ao negro oceano encapelado, agarrado a uma grossa madeira da porta de uma das cabines. As grandes ondas o levavam.
Veio o dia e a tempestade se foi. Onde estava? Nenhum sinal do barco ou de qualquer sobrevivente. Ricardo não conservou nada consigo. Nem água potável, nem alimentos, nem instrumentos de qualquer espécie. Segurava com firmeza a tábua salvadora que flutuava agora no mar tranquilo.
À deriva (estamos todos à deriva) ficou o comerciante Gaspar. Consolava-o, entretanto, uma frase que ouvira de um dos passageiros no Domingo do naufrágio. “Passaremos em breve pelos Açores.” As correntes então o levariam a uma das praias daquelas ilhas?
Ricardo Gaspar era um homem prático, sem sutilezas ou especialidades. Cumprira a vida regularmente. O comércio herdara do pai e do avô. Fizera-o crescer muitíssimo. Negociava com vinhos de vários países. Vivia abastadamente. Prover a casa, cuidar da esposa e dos filhos, as obrigações religiosas, moderação na política, o que havia mais além disso?
Agora tinha a morte ao pé de si como perspectiva certa. Mas não estava em desespero. Ainda esperava salvar-se. Pensava na família, por certo. As terríveis notícias… porém não era um pensamento insistente. Vinha às vezes e não doía tanto como era de se esperar. Ficou surpreso. Ocupava-lhe, por exemplo, muito mais a mente uma caixa de um raro vinho da Grécia, de duzentos e cinquenta anos, que jamais iria provar. Que guardara para um momento especial. Nunca o teria!
Ah, morrer é perder tanto. E é tão pouco o que temos. Ricardo Gaspar quase chorou pela caixa do vinho grego. E por todas as vezes que renunciou.
Parecia que deixava a ópera no melhor momento, na hora da ária mais bela. E faltava tanto… Sim, pensar nisso era o que o punha em tristeza pesada. Como lembrar-se de Eunice, a jovem criada espanhola. Acontecera há pouco mais de um ano, na época da Romaria, em sua quinta perto de Sintra. A mulher e os filhos tinham ido às rezas e ficaram sós, a espanhola e ele, em uma intimidade que só confirmava o que prometiam os olhares que ambos trocavam furtivamente.
Naquela desoladora solidão e em meio às vagas, Ricardo quase podia sentir o cheiro de alfazema que emanava dos ondulados cabelos castanhos de Eunice. Jovem, bem jovem. A boca feito uma romã, os seios fartos…
Um dia, porém, precisou deixá-la partir. Não era nada imperioso, apenas uns assuntos de família que a levaram ao Alentejo. Poderia ter impedido. Poderia ter dito o quanto aquelas tardes nos olivais eram vida para ele. Foram vários os encontros. Bons, furtivos, regados a vinho e à paixão. Mas deixou-a ir. Como explicá-la na sua vida? Como inseri-la? Sob que moldura?
Agora, ali no mar, parecia haver todas as razões. Ricardo Gaspar já estava muito fraco. Correntes marítimas o puxavam. Para aonde? A sede era desesperadora. E como eram solitárias e imensas as noites!
Nós não temos escolha. Deus é a nossa tábua de náufrago. Mas tudo pode ser um grande e terrível engodo. O que fazia a esperança na caixa de Pandora? Ela também seria um dos males, o pior deles, pois nos faz acreditar.
Ricardo Gaspar não teria certamente mais um dia de vida. Estava a ponto de desfalecer. A sede, a fraqueza… mas ainda acreditava que veria no horizonte alguma faixa de terra. E num certo momento parecia vê-la bem distante, apenas uma tênue linha que seria sua salvação. Estava sendo levado para lá. Era certo, sobreviveria.
Mas assim como no escaldante deserto, embora ali fossem águas, o calor do sol e a debilidade física podem fazer o homem delirar. Talvez fosse miragem o que pensava ser a terra.
E mais uma vez o sol nasceu tingindo de dourado as águas azuis do largo oceano. Semifechados os olhos, muito cansados, quais velas prestes a se apagarem, o que via Ricardo Gaspar, comerciante de vinhos em Lisboa, ao longe, bem ao longe…???
Professor Doutor Everton Alencar
Professor de Latim da Universidade Estadual do Ceará (UECE-FECLI)
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