Meu menino de quatro anos tem uma história preferida. É a do lobo. Poucas vezes ele se lembra que o título da história é chapeuzinho vermelho. Ele faz caras de “animal selvagem”. Ora diz que é um leão, ora diz que é tigre. Mas o inimigo, o vilão de suas histórias, é sempre o lobo.
Curioso. Lembro-me que foi com a palavra “lobo” no título que obtive o primeiro texto repercutido na cidade. “Sobre meninos e lobos”, assim eu intitulei o texto.
Cheguei a ser convidado por uma simpática senhora que professava o espiritismo para uma visita à sua residência. Tratou-me bem. Disse-me que o meu texto havia tocado o coração dela.
Era um texto em que eu expressava tudo que sentia, naquele momento, acerca de minha trajetória numa igreja protestante. Claro, eu havia sido “excomungado”, por assim dizer, daquela instituição; então era natural que houvesse mágoas, rusgas. Mas eu terminava o texto dizendo, a despeito das críticas feitas à religiosidade legalista, que eu havia sido salvo pelo olhar de um menino.
Não precisa ser cristão para entender a referência. Eu tinha uma visão diferente de Jesus. Ele era aquele que trava Deus por “Abba”, paizinho, papai. Era um homem de seus trinta e poucos anos que ousava chamar o Todo-Poderoso da mesma forma que uma criança chama seu pai. Ele chorava. Mostrava medo. Fragilidade.
Assim meu filho me chama também: papai. Mas a vida ensina ou você morre sem entender nada. Já são passados dez anos, como na música de Led Zeppelin.
E um versículo me veio à mente nestes tempos de tormenta. “Ele veio para os seus, mas os seus não o receberam”.
Na história do lobo e da chapeuzinho, o monstro é sempre o estranho, aquele que está à espreita. Aquele que se disfarça para fazer o mal. Na vida real, por vezes, “as pessoas que você mais ama são aquelas que você mais odeia”.
Quando se é criança – seja na idade, seja na própria vida -, é comum pensarmos que o Outro é sempre o mal personificado. Que o lobo é o estranho.
Mas quando se cresce, quando saímos de casca, vemos claramente que todo o mal que acusamos o Outro de ser muitas vezes está em nós. E que, por vezes, o estranho, o assustador, é quem nos salva nas horas absurdas. É a vida ensinando outras histórias.
Revisto meu texto. Reconheço que o mal, sob diversas formas, vai se entranhando nas nossas vidas. Ao longo da jornada, vamos ferindo e sendo feridos. É a vida devorando à vida. Todo o tempo. O tempo todo.
Só que hoje as histórias se revestem de personagens menos esquematizados. Hoje é difícil diferenciar, como na história de Orwell, quem é quem.
É como se os personagens saíssem de dentro de nós para nos contar uma história sobre nós mesmos. Uma história em que ora somos os mocinhos, ora somos os vilões.
E como na história preferida do meu filho, existe sempre um devorador no final. Mas ele não está lá fora, à espreita. Não somos sempre suas vítimas indefesas. Mas esta é uma outra história…
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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