Desde que o mês de julho, mês de férias, começou tem sido visível o aumento do número de crianças e pré-adolescentes nos semáforos da cidade, com maior frequência, e em maior número, no cruzamento da Av. Perimetral com a José de Alencar, onde fica um supermercado. Além dos menores que já vivem permanentemente ali fazendo malabares, em troca de algum dinheiro, agora outros pequenos estão ocupando o território. Este tema da presença de crianças na rua, vendendo doces ou nos semáforos fazendo malabares já foi pauta deste periódico, mais de uma vez. Os casos são denunciados, o município alega abordagem, mas as crianças sempre acabam voltando para o mesmo lugar. Aliás, algumas delas nunca saíram de lá.
Os órgãos que lidam com os direitos e defesa das crianças e adolescentes concordam que não é possível fazer uma assepsia no local, pois isso não passaria de um mero paliativo. Limparia num dia, e no outro, outros menores estariam ocupando os espaços.
De acordo com a opinião de especialistas, faltam políticas públicas concretas de atendimento e assistência a este público e suas famílias. É difícil manter as crianças em casa amargando dificuldades e falta até do que comer, se ali, no semáforo, elas têm comida e dinheiro, todo dia.
Há registros de crianças usando a mesma prática no cruzamento da Perimetral com a Plácido Castelo (semáforo da extinta Comacon), na confluência da Perimetral com a antiga Rua do Cruzeiro (próximo ao Corpo Bombeiros), nos demais semáforos do Centro e nos estacionamentos dos supermercados e farmácias.
Em geral as crianças usam uma velha tática de oferecer produtos como doces, bombons, artesanato, ou fazem malabares, em troca de algum dinheiro. Já se tornou cena corriqueira, nesses locais citados, os menores com seus apetrechos vendendo alguma coisa, ou simplesmente pedindo ‘um trocado’. Em algumas situações estão sozinhos, em outras, também há a presença de adultos, embora não há identificação de parentesco entre eles.
Labirinto de violência e dificuldades
Os meninos que se arriscam na frente dos carros para ganhar um trocado, as meninas que vendem bombons e os adolescentes que se desdobram praticando malabares e outras acrobacias, vivem realidades duras. Geralmente são filhos órfãos, moram com os avós ou terceiros, sofrem violência doméstica ou sexual, e nos casos dos que ainda moram com os pais, convivem com os traumas de presenciar agressões físicas e verbais, dentro de casa, com o pai agredindo a mãe, e os casos em que os genitores são usuários de drogas ou alcóolatras. Com todos esses componentes tóxicos, dentro de casa, as crianças se veem num labirinto de violência e dificuldades e acabam migrando para o único lugar onde encontram paz e alento que é nas ruas. Mas é preciso evidenciar também que muitas das crianças estão na rua trabalhando para levar dinheiro para casa. Isso, sob o olhar e o conhecimento dos pais.
Uma adolescente de 12 anos vende bombons ao preço de R$ 2,00 no semáforo do Lagoa. Chega a apurar até R$ 100,00 por dia se consegue vender 50 bombons. Antes ela estava sozinha, agora está acompanhada da irmã, de 09 anos, também vendendo ‘trufas’. As duas encaram com naturalidade o fato de estarem ali. A menor de 09 anos é tão ingênua que quando não consegue vender expressa logo no rosto a frustração e a tristeza. Um menino, que agora já aparenta ser maior de idade, disse que passou da fase de adolescente para adulto trabalhando nos semáforos da cidade. Hoje, segundo ele, continua sendo dos semáforos de onde tira o sustento de casa. “Moro sozinho. Minha mãe faleceu de covid, meu pai não conheci, pago meu aluguel, água, luz e compro minhas coisas do dinheiro que ganho nos semáforos”, disse o garoto que confessou arrecadar cerca de R$ 30,00 por dia, vendendo doces ou fazendo malabares.
Para alguns a mudança de fase de criança para adolescente teve como cenário aquele cruzamento da Perimetral com a José de Alencar. “Cheguei aqui já faz bem uns três anos. Quase todo dia eu venho, ganho meu dinheiro e consigo comprar minhas coisas, melhor do que tá fazendo coisa errada, né não?”
Riscos de violência
O cruzamento da Rua José de Alencar com a Perimetral já virou local de disputa desses menores e dos adultos, na corrida para ver quem chega primeiro nos transeuntes que trafegam de carro ou de moto, para abordar. As reações das pessoas são as mais diferentes. Há quem ache que as crianças estão ali porque estão precisando, mas há também quem se posicione contra, uma vez que a permanência delas naquele local pode evoluir para um ciclo vicioso, uma vez que é uma fonte de dinheiro. Seja vendendo alguma bugiganga, ou fazendo malabares, as crianças acabam conquistando algum dinheiro, que vai acabar indo para dentro de casa e suprindo as carências da família.
A população se divide quando o tema é levantado. Há quem vire o rosto para não enxergar, mas há também quem financie atendendo aos apelos dos meninos e dando dinheiro. Alguns levam o dinheiro que arrecadam para casa e dividem com a família, outros usam para outros fins, como o uso de drogas e a compra de objetos pessoais.
A presença dos menores nesses cruzamentos representa grandes riscos de violência (física, psicológica ou sexual). Há relatos de crianças que já foram assediadas, mas conseguiram fugir dos agressores. A violência, principalmente a sexual, acontece de forma velada, quase ninguém percebe. Os assediadores escolhem os horários para atacar. O fato de as crianças e adolescentes estarem sozinhas nesses locais já é por si só grande risco e exposição a todo tipo de violência. Mediante a sequência de fatos, as perguntas que sempre ficam no ar são: quem são seus pais? Onde essas crianças moram? Há conivência dos pais com a prática usual delas em ficar na rua para tentar ganhar algum dinheiro?
Intervenções
O município foi procurado para se posicionar sobre o assunto. Cyntia Maciel, coordenadora de Proteção Social Especial, da Secretaria de Assistência Social, informou que, através do CREAS-Centro de Referência da Assistência Social, é feito trabalho de abordagem, não apenas com as crianças, mas também com outros públicos que estão em situação de rua.
O público alvo deste tipo de procedimento são crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos e famílias, que estão nesses locais, ou grandes concentrações de pessoas, que utilizam estes espaços como moradia, obtenção de renda, sobrevivência, ou nas situações em que haja violações dos direitos fundamentais dos indivíduos ali inseridos. As principais demandas de atendimentos são com pessoas em situação de rua, usuárias de produtos tóxicos, álcool e drogas, trabalho infantil, exploração sexual, entre outros.
No caso específico das crianças e adolescentes nos semáforos, a coordenadora informou que a equipe do CREAS, composta por psicólogo, assistente social e quatro orientadores sociais, faz abordagens diurnas e noturnas visando identificar os públicos e fazer encaminhamentos. Segundo a coordenadora, no trabalho de abordagem as famílias são identificadas e passam a ter acompanhamento das equipes. Ainda de acordo com Cyntia Maciel, quando há comprovação de que há conivência da família com presença das crianças na rua, os casos são encaminhados para o Ministério Público, que passa a notificar a família, podendo esta ser responsabilizada e responder criminalmente.
Como ações pontuais desenvolvidas pelo CREAS para atacar o problema, a coordenadora citou: “abordagem social noturna e diurna nos principais pontos de identificação de crianças e adolescentes inseridos no trabalho infantil; campanhas municipais de forma intersetorial, contra o trabalho infantil, por meio de divulgações em rádios, redes sociais, panfletagem, blitz educativas e rodas de conversas. Encaminhamentos ao Sistema de Garantia de Direito; encaminhamentos ao Ministério Público, acompanhamento familiar; visitas domiciliares; acolhida; escuta; estudo social; diagnóstico socioeconômico; monitoramento e avaliação do serviço; orientação e encaminhamentos para a rede de serviços locais; orientação sócio-familiar; atendimento psicossocial; orientação jurídico-social”.
Promotoria da Vara da Infância
A reportagem procurou o Ministério Público para se posicionar sobre o assunto. A promotora Dra. Helga Barreto Tavares, (titular da 3ª Promotoria de Justiça de Iguatu), disse que em síntese o aumento atual do número de crianças no semáforo é um problema estrutural derivado da pandemia do coronavírus que produziu muita miséria, desempregos etc. “Assim, estamos vendo um aumento da população de rua como um todo, a qual já tínhamos em Iguatu números de crianças em sinais, sendo que ao conversar com estas elas dizem estar “trabalhando”, conforme já ouvimos relatos em audiências, ou seja, para eles é uma forma de se manter. Desta forma, o que estamos vendo é um desemprego estrutural gerado pela pandemia, refletindo-se também entre os adolescentes”, afirmou.
De acordo com a promotora, quanto à questão de eventuais pedidos da população para retirar essa ou aquela criança do sinal, é preciso lembrar que a prática da Assistência Social não é fazer higiene social, ou seja, não é porque as pessoas estão reclamando que tem uma criança no sinal que, imediatamente, os profissionais vão lá e ela será retirada, colocada imediatamente em um abrigo, por exemplo. O procedimento correto é através do CT e CREAS, por meio das abordagens sociais e buscas ativas, viabilizar a sua inserção e da família em algum programa social. Além disso é importante que o PETI (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil) esteja funcionando, os benefícios socioassistenciais sendo corretamente dispensados bem como a política socioassistencial para a pessoa em situação de rua. “Uma novidade que nós devemos ter dentre essas crianças que estão nos sinais, e um problema novo que alguns estados como o Maranhão vem enfrentando, é o aumento do número de órfãos em decorrência da Covid-19 também. “Sabe-se que há em torno de 130.000 crianças órfãs em virtude da Covid-19. Com isso, questiona-se o que o Estado do Ceará vai fazer quanto a isso? Até agora não se sabe, não há nenhuma lei publicada sobre o assunto. Recentemente, o deputado Renato Roseno falou sobre o tema, mas até agora, que eu saiba, não se apresentou nenhum projeto para enfrentar essa questão”, lembrou.
Entre essas crianças que estão em situação de rua, devem ter também órfãos, sendo um novo problema social, para o qual ainda falta um instrumento jurídico para lhes garantir direitos.
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