“Para se ser feliz até um certo ponto é preciso ter-se sofrido até esse mesmo ponto”.
Edgar Allan Poe
Já era por volta das duas da madrugada quando ouvi um barulho estranho vindo do meu quintal. Por estar bêbado àquela altura, pensei que poderia ser apena impressão, coisa da minha cabeça. Fui conferir. Nada de estranho. Retornei para a sala, acendi um cigarro e voltei minha atenção à leitura do bom e velho pássaro preto do macabro e genial Poe: o corvo.
Foi quando, do mesmo modo incômodo do corvo do conto, uma voz invadiu minha mente dizendo: ‘‘Alguns recorrem, a fim de aplacar a dor, à religiosidade; outros, para o mesmo efeito, se fazem presentes nos divãs terapêuticos… fazem uso até mesmo de medicamentos prescritos pela medicina moderna. Já há os que recorrem à mesa do bar mais próximo. O caso é que, em comum, todos buscam a sua tábua de salvação para a danação do existencialismo. Mesmo os que não tem consciência disso, o fazem sem sabê-lo. Os caminhos pouco importam. A finalidade é o que motiva o socorro. Ah, espíritos, quem dera pudéssemos falar das nossas deficiências com a mesma naturalidade com a qual massageamos o nosso ego tão inflamado. Mas ele está lá, escondido para o mundo e aberto quando fechamos, solitários, a porta das nossas casas.’’ E que tenho eu com isso? Quem me fala e invade minha mente já tão atormentada com frases existenciais – como se eu já não tivesse de lidar com a minha própria.
Já era por volta de três da manhã. Tinha de procurar o sono que há muito me abandonou; precisava fugir daquela voz, ir pra cama para o sagrado descanso notívago. A saideira! Sim, a saideira … Sabia que precisava dormir, mas o corpo pedia o oposto. Foi, pra variar, um dia difícil, e a noite adentro prometia apenas demência. O balcão de um bar rústico ou a mesa velha de uma casa é como uma comprida cadeira amadeirada de igreja: nele confessamos nossos pecados e despejamos nossas dores para as paredes, e seu eco volta para nós.
Já devaneando, não sabia até que ponto eu tinha sido influenciado pela literatura a ponto de confundi-la, transportando-a para barulhos que julgava vir do quintal e da minha mente de saúde discutível. A boca seca, apesar da cerveja… a ressaca e as dores da alma… tudo pesava nesta sofrível madrugada. Tudo pesava verdadeiramente em demasia e limitava-me como grilhões. Estava imerso em mim mesmo. A sala cheirava a fracasso. Fui à geladeira e bebi uma cerveja como café da manhã em plena madrugada. O meu gato dormia pesadamente. Tomei um banho e fui fumar. Não adiantava o que eu fizesse, continuava com o mesmo amargo na alma, boca e corpo tedioso. Deitei e vi que tudo se consumou ao me consumir. Levanto-me, abro a geladeira… mais uma cerveja…
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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