Um galo sozinho não tece uma manhã:/ele precisará sempre de outros galos./De um que apanhe esse grito que ele/e o lance a outro;/de um outro galo/que apanhe o grito que um galo antes/e o lance a outro; e de outros galos/que com muitos outros galos se cruzem/os fios de sol de seus gritos de galo,/para que a manhã, desde uma teia tênue,/se vá tecendo, entre todos os galos.
Li com entusiasmo João Cabral de Melo Neto, uma biografia (Todavia, 557 págs.), de Ivan Marques, mal chegara às livrarias da cidade. Trata-se de um belíssimo trabalho sobre vida e obra daquele que considero um dos três maiores poetas brasileiros de todos os tempos (Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, os dois outros), escrito com leveza de estilo e notável rigor historiográfico no filão do que existe de melhor na tradição de pesquisa no país. Sob este aspecto, ressalte-se, Ivan Marques já nos brindara com os primorosos Cenas de um modernismo de província: Drummond e outros rapazes de Belo Horizonte (2011), Modernismo em revista: Estética e ideologia nos periódicos dos anos 1922 (2013) e Para amar Graciliano (2017), títulos mais que recomendáveis.
Há na produção de Ivan Marques um detalhe que me parece responsável pela elevada qualidade do que faz, quando lida com a literatura, em relação a grande parte do que existe no gênero, biográfico sobretudo: diferentemente de outros autores, jornalistas em sua maioria, que se têm dedicado a biografar escritores, Marques é professor de literatura brasileira na USP, o que justifica a habilidade com que trata das questões estéticas em seus livros.
Neste João Cabral de Melo Neto, uma biografia, mais que nos trabalhos anteriores, deparamos com um biógrafo que explora com rigor a produção poética do seu biografado, a exemplo do que faz quando lança luz sobre a poética límpida, simétrica e mineral do pernambucano em incontáveis passagens do livro. Referindo-se às relações com a arquitetura de Le Corbusier no livro O engenheiro (1945), por exemplo, o biógrafo vai no nevrálgico: “Os preceitos corbusianos – planejamento racional, claridade, economia de recursos, uso de formas geométricas simples, entre outros – passavam a constituir também os fundamentos de sua construção poética. As inovações formais de O engenheiro estavam ligadas justamente à precisão de linguagem, ao equilíbrio das estruturas, à nomeação de ‘coisas claras'”.
Como se vê, ecoando o próprio estilo do poeta, Marques clarifica características da poesia de João Cabral de Melo Neto sem incorrer em métodos rebuscados ou inacessíveis ao leitor não especializado em literatura. Pelo contrário, torna a sua exposição tão didática que não é muito afirmar que um poeta comumente considerado difícil e incompreensível quanto o autor de A pedra do sono, ao final desta biografia irretocável, terá se tornado íntimo do leitor, mesmo, como disse, os não especializados.
O livro é, portanto, muito mais que uma biografia no sentido clássico da definição. De suas páginas, com a espontaneidade e o didatismo acima evidenciados, surge a figura do artista imenso, um verdadeiro arquiteto da poesia, um criador que desmistifica com sua arte o mito do ser inspirado ou dotado de mágicos poderes em favor do trabalhador minucioso, beneditinamente dedicado a extrair da palavra a sua maior potência. É esse o viés, o do poeta despojado de subjetivações, que interessa a Ivan Marques mostrar ao leitor em grande parte do livro. Mas o faz, insisto, sem laivos professorais. É tudo leve, objetivo, claro como o verso cabralino ao tratar, entre outros temas, da questão nordestina com sua “faca só lâmina”.
Ao lado do poeta, em não menor proporção, está o homem João Cabral de Melo Neto, exposto na biografia de Ivan Marques sem sutilezas, rodeios, tentativas forçosas de poupar o lado torto de sua complexa personalidade. Nada que justifique, a propósito, leituras infelizes ou de todo descabidas que se tem feito do livro de Ivan Marques, na linha do que, para minha surpresa, aparece em edição da Folha de S. Paulo de 27 do corrente, em coluna do prestigiado jornalista e escritor Mario Sergio Conti: “O retrato que traça do poeta é assombroso”.
Erra o notável colunista quando afirma, por exemplo, que Cabral se opunha ao nome de Chico Buarque para musicar o poema Morte e vida Severina, que faria estrondoso sucesso no Festival de Nancy, em 1966. Se é verdade que o poeta temia que ocorresse a seu poema o que vira em relação a outras experiências, “… a música inteiramente arbitrária, com os versos partidos e manipulados ao bel-prazer do compositor”, não é menos verdade que, de cara, admirou o resultado do trabalho de Chico, exaltando, por exemplo, a solução encontrada para o poema “Funeral de um lavrador”, que o rapaz de pouco mais de vinte anos a quem coubera musicar o poema, ironicamente, considerava “a mais chata da peça”.
Sobre o trabalho, em prantos, logo após a apresentação da peça, no Festival de Nancy, diria Cabral ao próprio Chico Buarque: “Eu não conseguirei jamais ler Morte e vida Severina sem associá-la com sua música”.
Em sua crítica impiedosa ao poeta pernambucano, Conti não consegue esconder o incômodo que lhe causa a posição política do biografado, marxista confesso, carregando nas tintas a fim de desconstruir sua boa imagem e estigmatizá-lo como um mau-caráter, temperamental e vocacionado a tirar proveito em tudo. O faz a qualquer custo, manipulando fragmentos do livro a fim de tirar provas daquilo que afirma, como disse, de forma apressada.
Li com entusiasmo, reafirmo, João Cabral de Melo Neto, uma biografia, de Ivan Marques.
É grande o poeta, não menor o homem.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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