No prédio ao lado, podia-se ouvir vozes sem que se pudesse, com isso, entender sobre o que falavam e sobre quais palavras utilizavam. O Condenado presume que os colóquios seriam sobre a sua sentença.
No prédio de parede mofada pela chuva, o homem sem sorte nada podia fazer que não esperar pela sua hora. Despedir-se do mundo – já que não havia de quem se despedir – era a sua única e final obrigação.
Sem mulher, filhos ou parentes distantes, o homem assassino entretinha-se em fugas morosas lendo dias e noites adentro. Leu como nunca antes em toda sua vida. Arrependera-se, com essa experiência, de não ter atentado para esse hábito salutar.
Viu-se em diferentes formas de vida e épocas em cada uma das personagens das literaturas portuguesa, russa e francesa. Os livros lhes eram entregues pelo senhor da padaria, que o ‘‘estimava’’ por pura ação humana (egoísmo envolto em interesse), pensando receber alguma recompensa na vida futura do pós-morte.
Na verdade, mandava que alguém os entregasse. Não lhe convinha manter relações amistosas com um parricida. As conversas vindas do prédio ao lado cessam. Ouvia-se, daí em diante, apenas o silêncio da madrugada: gatos remexendo os latões de lixos, cachorros impedindo, aos latidos, que os felinos fizessem suas refeições soturnas; um carro que passava, prostitutas e bêbados discutindo valores e cantando…
Enfim… É a vida boêmia dos homens e dos animais, que pode ser vista pela diminuta janela da cela do prédio de parede mofada. O condenado deixa cair um pensamento nostálgico e furtivo de sua saudade da liberdade através de uma fina e cristalina lágrima. Os olhos marejados são recompostos pelas mãos assassinas.
Os dedos cortados pelo vidro no dia da contenda seguram um lápis utilizado para grifar trechos importantes do livro – que também carregava em uma das mãos. Saiu da janela e foi acomodar-se no incômodo leito de alvenaria. O ambiente era pouco iluminado. Guardou o livro e pesou os olhos.
O dia amanheceu chuvoso e triste. Era o primeiro dia da sua morte e o último de sua vida. Pediu ovos e cigarros no café da manhã. Abraçou seus livros e pediu perdão à sua mãe em oração – coisa que não fazia desde a juventude, era orar.
“Obrigado, escritores amigos. Obrigado, tempos atrás das grades. Hoje sou um homem melhor graças a vocês.” – disse em voz alta, mas sem pretensão de ser ouvido pelos militares que o aguardavam à porta da cela. Chorou e pediu para ser enterrado junto com os seus seletivos livros dos portugueses, russos e franceses…
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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