A história do jornal velho do velho do cachimbo

11/12/2021

Certo dia resolvi sair a pé, a esmo pela cidade, pelas ruas menos movimentadas. Numa delas, dentro de uma taberna, havia um homem baforando um cachimbo – lembro-me de que há tempos não fumo cachimbo.

Aquele ambiente cheio de moscas por sobre a mesa escura, os encartes de mulheres seminuas (desses que encontramos em qualquer oficina ou borracharia de qualquer cidade; ambiente de homem de verdade, não dessas “gazelas” ressentidas de hoje em dia). Os famigerados copos americanos me remeteram há tempos de outrora, onde bebia cachaça com limão, de tira-gosto e fumava cachimbo.

Pois bem. Adentrei ao recinto onde homens com o dobro da minha idade me olhavam com desdém, não me dando crédito, fitando o olhar para o meu cabelo “engomado” e de pouco gris (já hoje, tenho muitos). Fingindo não me importar, pedi meia dose de cachaça, com seriguela de acompanhamento. Olhei para um grupo fechado de carteadores. Eles, de tão compenetrados, sequer notaram minha presença.

“’Solzim’ quente, né?!” – Falei para o “homem velho do cachimbo”, que se mostrou muito simpático para comigo: um transeunte insolente. Já com mais intimidade, sentindo-me à vontade, pedi um trago do seu cachimbo – em troca, lhe daria cigarros. Feito o acordo, com o cachimbo em mãos, pus a tragá-lo. Tonteei com o forte fumo inalado.

Senti o mundo girar e o coração bater mais forte ao sentir os efeitos químicos e saudosos que aquele mísero charuto me oferecera. Após o êxtase, fiquei ali contemplando a gente humilde dentro e fora daquele lugar. O mundo se torna mais belo quando até mesmo um simples trago é degustado com o sabor da vida que pulsa nas veias ameaçadas pelo próprio fumo. O ambiente simples e o que ele nos proporciona, ainda é o melhor lugar para se estar.

O velho, além do cachimbo, ofereceu-me a seguinte história (ou estória), que compartilho com o prezado leitor:

Numa grande caixa de papelão, panelas, pratos e talheres eram acomodados, envoltos em jornal velho. Biana, a filha mais nova do brasão Bragança, na mudança, desembalava-os com o primor de uma sílfide.

Os papéis, com o vento, voavam pela casa. A moça os recolhe para pôr na lixeira, quando lê uma notícia datada de 19 março de 2005: ”INCÊNDIO INTENCIONAL MATA ADOLESCENTE”.

Neste instante Biana, de corada, se vê pálida e zonza. O jovem em questão era o seu namorado que pensara ter sumido, fugindo, assim, da paternidade.

Seus olhos lacrimejados percorrem a matéria com uma rapidez assombrosa. Lia o que seus pais a esconderam, e que o acaso revelou nas folhas amareladas do jornal cuja única serventia seria a de envolver utensílios domésticos.

O incauto rapaz fora conduzido por uma promessa de emprego na esperança de casar-se com Biana e constituir uma família. Ledo, o apaixonado pretendente fora levado, na verdade, para uma emboscada armada pelos pais da inocente filha caçula.  “É caso de pele escura” – declarou o delegado responsável pela elucidação do caso.

Biana, que pensava ter pais presidiários por conta de um incêndio acidental na velha casa de campo, descobre, assim, dessa forma insólita, que a mesma fora feita cinzas em razão do seu negro amor.

Quantos dias o praguejou, quantas vezes o amaldiçoou, mal sabendo ela que a suposta fuga do jovem fora forjada, inventada quando, na realidade, há onze anos suas cinzas descansam entre as madeiras, também feitas cinzas, da velha casa de campo da família Bragança. Biana desmaia, amparada por Raí, único e derradeiro filho do jovem feito em chamas. Ela retoma a consciência… de que seu filho teve um homem como pai, e bestas como avós.

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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