O ano, recordado mediante uma sessão de regressão, era 1814. Remontava do século XIX, meados do seu segundo decênio, uma visão relativamente vaga de uma obscura taberna situada em algum país europeu no qual não me fora possível precisa-lo.
Pude me ver vestido em uma indumentária contrastante entre as cores cinza e marrom. Tinha cabelos relativamente longos e negros, e cútis branca. Carregava comigo, na algibeira, um rascunho feito por mim mesmo, da minha falecida esposa, que morrera de uma enfermidade ainda desconhecida pela medicina da época. A fitoterapia não foi capaz de curá-la da desconhecida e feroz moléstia da qual padecera.
A fim de aplacar as desventuras por mim sofridas até ali, bebia compulsivamente uma garrafa de whisky puro enquanto, ébrio, preparava o tabaco, enrolando-o com destreza em um papel impróprio para o consumo. Mas a saúde já não me era prioridade desde que a perdi. Talvez a vida desregrada fosse a minha condução para encontrá-la no submundo das almas perdidas.
Era já adiantada hora imprecisa, e eu continuava ali, recordando as agruras, revivendo-as uma a uma sem o menor intento de dispersá-las. O taberneiro, único ser vivente do ambiente, fazia-me companhia sempre que o requisitava quando me cessavam as lágrimas incontidas.
Em um dado momento, ao retornar de uma das minhas vagas idas à latrina, senti como que um ar gelado, porém reconfortante, me alcançasse o pescoço. De soslaio repentino e abrupto, olhei para onde me pareceu provir aquela gelidez fantasmagórica.
Para o meu espanto, era Elizabeth! Minha doce e amada Elizabeth! Pude ter certeza, mediante a visão obnubilada de sua silhueta que, aos poucos, em relances parcos, tomava forma em pleno centro do salão da taberna de madeira rústica e quase mofada.
Tremi – não de medo – ao sentir a boca seca e as palavras, querendo sair, travadas umas nas outras em minha língua trôpega. O espectro nada me dizia. Se algo proferisse, quem sabe as frases em mim se formariam e desencadeássemos, ali mesmo, sem cerimônia, o nosso colóquio paradoxal: homem morto e espírito vivo. Colóquio único no mundo, quiçá!.. Mas muda, nada falava, a não ser através dos olhos caridosos dela que, com tamanha ternura, me fitava como uma mãe ao seu amado filho único.
Traduzi-os como que se me atentasse para não perder a fé na vida que, incauto, eu desperdiçava desde a sua ida para o panteão das imaculadas criaturas do ”Deus Desconhecido”. Senti uma dor ultrapassar o meu coração desprendido das coisas materiais, como se uma espada cravada ali estivesse.
A vista, sem meu consentimento, escurecia enquanto eu recusava desmaiar para, assim, consciente, vê-la pelo maior tempo possível… Mas adormeci. Para a minha infelicidade e maior saudade, adormeci. Ao recobrar a consciência, já não era eu… Acordei no consultório médico em pleno século XXI… e Elizabeth deixou-se no século XIX. Dois séculos me separam do meu espectro eterno. Pago a consulta e vou beber. Por mim, por Elizabeth… por nossas reencarnações!
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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