A inversão de interesses no Brasil (II)

29/01/2022

Por trás do debate em torno da corrupção escondem-se interesses inconfessáveis, e os mecanismos adotados para combatê-la, com raríssimas exceções, acabam por incorrer naquilo que se propõem atacar. Caso mais recente (e supostamente o mais relevante da história recente no Brasil), é o da Operação que se convencionou chamar de Lava Jato, sediada em Curitiba, e que teve à frente o então procurador Deltan Dallagnol, mancomunado ao ex-juiz Sergio Moro para levar a efeito um dos mais sórdidos esquemas de corrupção no Ministério Público Federal, como restaria provado, a fim de impedir que o ex-presidente Lula pudesse participar do processo sucessório em 2018. Ao fim e ao cabo, elegeu-se um dos mais corruptos e ineficientes governos de nossa história.

Exaltado pela direita brasileira como paladino do combate à corrupção, Dallagnol usaria a visibilidade que lhe conferiu a Lava Jato para tirar proveito pessoal em diferentes frentes – palestras, grandes eventos, viagens internacionais etc. – e envolver-se-ia em negócios ilícitos de vendas de casas populares a trabalhadores de baixa renda, crime jamais investigado.

Moro, lembremos, tornar-se-ia ministro da Justiça do presidente que ajudara a eleger-se. Ambos, hoje, são candidatos a cargos eletivos.

O caso envolvendo os malfeitos da força-tarefa da Operação Lava Jato foram tornados públicos pelo prestigiado jornalista norte-americano Glenn Greenwald.

Da confusão, pois, entre interesses públicos e interesses privados, resultam os males mais profundos do Brasil como algo estrutural. Nessa perspectiva é que se pode constatar essa inversão como um vício a corroer as raízes de sua fundação enquanto nação.

Frei Vicente do Salvador, escrevendo na terceira década do século XVII, chamara a atenção para o fato naquele que se pode considerar o primeiro livro de história do país (História do Brasil, 1500 – 1627): “Notava as coisas e via que mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer, e nada lhe traziam, porque não se achava na praça, nem no açougue, e, se mandava pedir as ditas coisas e outras mais às casas particulares, lhas mandavam. Então, disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa”.

Em seu clássico sobre o caráter nacional brasileiro, Raízes do Brasil, publicado em sua primeira versão em 1936, o historiador Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) fala do que, no Brasil, confere ao homem a sua principal marca de prestígio: não precisar dos outros. É desse “bastar-se” que se origina, segundo ele, a falta de talento do brasileiro para associar-se em ações de solidariedade, do que resultam o individualismo e a busca de preservação dos privilégios hereditários e os elementos anárquicos de nossas organizações sociais. Essa influência é de tal modo significativa que o indivíduo, mesmo fora do espaço doméstico, é levado a confundir o público e o privado, não raramente a inverter a relação entre um e outro a fim de locupletar-se.

Se é fato que o livro de Sérgio Buarque de Holanda apresenta linhas de interpretação hoje questionadas, e já muitas vezes exploradas no campo da produção intelectual sobre o caráter nacional brasileiro, não é menos verdadeiro que se trata de uma contribuição ainda indispensável em muito do que defende em seus pontos principais, com destaque para o reconhecimento de que os processos econômicos, políticos e sociais, devem ser examinados como algo estruturalmente ligado à nossa formação cultural, como analisa à perfeição o professor Antonio Candido acerca do significado de Raízes do Brasil.

Notável, ainda que mal compreendido no correr do tempo, é o que nele afirma Sérgio Buarque de Holanda sobre a “cordialidade” do brasileiro, aqui pontuada como uma tendência do nosso povo para lidar sentimentalmente com a realidade. Como observa Antonio Candido no trabalho citado (tenho em mãos a 26ª.edição, Companhia das Letras, 1995), “O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestações externas, não necessariamente sinceras e nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez”; para afirmar, adiante, o que mais nos interessa aqui: “O homem cordial é visceralmente inadequado às relações impessoais (grifo nosso) que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários”.

Outro notável estudo é “Os Donos do Poder”, de Raymundo Faoro, em que se deve destacar o exame que faz do ‘patrimonialismo’, termo com que se define a utilização dos recursos do Estado em benefício próprio, desvirtuando-se o papel que cabe ao governante ou àquele que exerce algum cargo público em suas relações com a sociedade.

Recorrente no Brasil, desde um passado remoto aos dias atuais, a corrupção tem diferentes faces e se faz ver na lavagem de dinheiro; no clientelismo desavergonhado; no nepotismo que grassa nas esferas municipal, estadual e federal; no que se convencionou chamar de jeitinho brasileiro; na troca de favores; na ingerência indevida nos negócios do Estado; nas decisões administrativas tortuosas; no superfaturamento de compras; na execução de obras; na prestação de serviços; nos processos licitatórios, na prevaricação etc.

Colocando-se na ordem da virtù, tal qual pensada por Maquiavel, para mais uma vez fazermos alusão ao pensador italiano, a observação do interesse coletivo, do bem comum, a correção no agir em face da realidade social, de conformidade com os pressupostos da honestidade e dos bons costumes, pressupõe, antes de qualquer outra coisa, a aquisição de valores morais que só a educação, formal e informal, é capaz de proporcionar ao homem (e, por extensão, à sociedade), exitosamente. É pela educação que se construirá uma sociedade esclarecida, devidamente preparada para o pleno exercício da cidadania, da fiscalização dos atos daqueles que governam, da participação popular nos pequenos e grandes projetos, no dia a dia da vida política e social do país.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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