Naquele dia o mercantil parecia estar bem mais apinhado. A senhora gorda à minha frente quase não me permitia ver a garota do caixa-rápido. Todavia, antes fosse a opulenta e mórbida senhora de enormes joias a única interceptora deste caso. A obstrução advinha de mim mesmo, que, tímido – ou apenas babaca -, recuava ante a sua presença quando, ao sair do seu trabalho, já sem aquela farda escarlate, cumprimentava-me sorrindo ao passar em frente à minha residência quando eu, sabendo deste horário, me punha no alpendre da tosca e decrépita mansarda que me servia de abrigo.
Como mencionado, recuei sempre… todas as vezes. Eu deveria convidá-la para algum evento da cidade. Sempre recuo miseravelmente! Temendo rejeição, me acovardo feito um rato. Acho até que os ratos de hoje em dia, como também as crianças, estão mais espertos, desenvoltos e matreiros do que eu.
No dia seguinte, afirmo para mim: tomarei coragem! Acordo cedo, faço as minhas orações (dessa vez, com mais afinco e fé, desejando que os santos levem em consideração o meu desespero), me visto com a minha melhor roupa – a da missa de domingo -, e saio rumo ao bendito mercantil. Ocorre que, durante o trajeto, minhas mãos suam sofridamente. Penso que uma dose de conhaque me cairia bem: esquentaria o meu sangue, que parecia coagular, e me daria a coragem de que preciso para falar com ela. Não a pedirei em namoro ou casamento. Trata-se de um simplório convite para sair. Imagino que, dada a minha vergonha e nervosismo, desmaiaria se se tratasse de um pedido formal de compromisso.
Entro no bar e, rapidamente, apressado como eu, peço uma dose caprichada de conhaque de alcatrão, com gelo e bastante limão. No rádio um cantor de bolero me dizia: ‘‘Esquecer que o mundo é triste e que as noites são escuras. E então correr felizes para a praça. Comprar flores pra enfeitar a nossa casa. Esquecermos nossas dores, para nós é primavera e o inverno não existe mais.’’ Depois dessa máxima, pedi mais uma dose. As minhas mãos já não mais suavam. Sentia-me bastante confortável. Junto aos ébrios, sentia-me, por fim, em paz comigo mesmo. Por que não me sinto assim na igreja?
Quando percebo, já é adiantada hora. Ela deve deixar seu posto em questão de minutos. Pago pelas doses e corro, agora, com a intrepidez de um desbravador mundano. Entro pela esquina da viela, ganhando com isso um curto espaço de atalho. Passos largos, não mais correndo, me recomponho para parecer natural e despretensioso. Adentro ao recinto e logo finjo procurar qualquer mercadoria e, nisso, de soslaio, fito-a. Ela fechava o caixa. Sua beleza gestual era tamanha, que penso que ela deva ser elegante até mesmo pondo o lixo para fora nas manhãs de sextas-feiras.
Como já estava no ímpeto beberrão, ao invés de bolachas ou qualquer outra coisa, resolvi comprar uma garrafa de conhaque. Enquanto sou atendido no caixa vizinho, ela, ao lado, tira o avental, me sorri e adverte precaução para eu não me exceder na apreciação daquele litro escuro.
Saímos juntos. Eu com o meu litro, ela com uma mochila lilás na mão direita. Peço para acompanha-la até a sua casa. Ela me permite e, como sempre, sorri na sua forma de expressar gratidão. Era uma mulher inteligente. No trajeto, descubro que gosta de peças teatrais e literatura. Que aprecia grandes clássicos da literatura nacional também. Que cultiva hortaliças, orquídeas e outras flores e plantas que não me vem à mente…
Daquele dia até o nosso término, passaram-se 3 anos. Há muito não a vejo. Também abandonei o conhaque. Já não saio de casa… e mudei de mercantil…
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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