Foi com grande pesar que recebi a notícia do falecimento de seu Valdecir. Era dono de sebo e, portanto, meu amigo. O curioso é que até dia desses ninguém sabia da existência de sebos em nossa cidade. Mas eu atesto que eles existiam – há quem diga que havia três, mas eu só sabia da existência de dois.
Seu Valdecir costumava cochilar enquanto eu passeava a vista pelos livros. Sentado em sua cadeira de couro, com sua barriga protuberante, pressentia o sono e me tranquilizava: “Fique à vontade. A casa é sua”.
E, de fato, era uma casa. Uma casa margeada por árvores frondosas, quase escondida da vista de todos – daí o anonimato e, agora que revelo sua existência, a surpresa. Era aposentado, o velho dono de Sebo.
O sebo era a extensão de sua família: pilhas de livros dos antepassados; livros em língua holandesa, francesa, inglesa; brasões de famílias ilustres, retratos, máquinas de datilografar (duas, que eu lembre) e muitos clássicos da literatura universal, naquelas edições antigas da Abril. Um dia, entre um cochilo e outro, ele me disse uma dessas verdades de saudosista:
– Hoje muita pouca gente lê. Os jovens não querem saber da leitura, só do celular. Aqui só andam você e uma moça.
Percebendo minha curiosidade, o velho fez uma descrição um tanto inexata da moça. Segundo o livreiro, ela entendia de livros, de edições antigas e novas – confessou até que, às vezes, ela o ajudava a catalogar os livros segundo o real valor deles no mercado.
“Devia conhecê-la”, disse o velho dono de sebo.
Na semana seguinte, ele ralhou comigo:
– Mas rapaz, ela saiu daqui há poucos minutos. Perdeu a grande oportunidade.
E acrescentou mais detalhes acerca da tal moça, feito um pintor que vai ajustando os traços, justapondo os detalhes, refazendo as cenas.
Desta vez acrescentou, ainda que sem maldade, que a moça era bonita. E que havia falado de mim a ela. Engraçado: houve uma grande coincidência neste dia – embora haja, neste mundo, quem defenda que não existam coincidências, como o leitor verá.
Neste mesmo dia fui ao segundo Sebo em busca de um livro que não achei no primeiro. Após horas garimpando entre a poeira e as pilhas e mais pilhas de livros e revistas, o dono do segundo sebo, este mais falador e metido a intelectual, comentou:
– Hoje andou uma moça aqui. Muito inteligente e bonita. Uma gata. Ganhei o dia.
Fingindo surpresa, quis saber mais sobre ela. A descrição batia: era a mesma que andava em seu Valdecir. Comecei a pensar com meus botões paranoicos:
“Será que ela existe mesmo ou estes dois estão de conluio para me enganar? Hum-rum. É possível. Devem ter percebido minha solidão. Nunca venho com amigos ou coisa que o valha”.
É verdade que havia moças bonitas e moças leitoras e ambas as duas, como dizia uma professora da Urca. Mas eles descreviam a tal moça com traços quase irreais. A cada nova visita, um novo detalhe físico, uma nova conversa improvável era acrescentada.
Com o tempo, passei a buscar mais a ela que aos livros. Mas, por melhor que fosse o meu tino para achar livros raros, por maior que fosse minha frequência e demora nos sebos, nunca a encontrava.
Acometido pela descrença e a impaciência, típicas da minha geração, passei a ser rude com os velhos donos de sebo.
“Essa moça não existe. Vocês ficam inventando história. A traça dos livros já subiu à cabeça de vocês. Tchau”. E me despedia prometendo não mais voltar. Cada um, a seu modo, se ria de mim.
O proprietário do segundo sebo, o Viralouca, ainda me saiu com esta: “Adeus e até a próxima semana”.
Na semana que sucedeu a esse menoscabo, eu voltei aos sebos. Sim, confesso: voltei com a cara de viciado que tem uma recaída; com a cara do homem que jurou parar de beber após envergonhar esposa e filhos. Mas eu voltei. Agora menos cético e mais sôfrego. Estava como quem vê o livro da vida, por entre a poeira e a futilidade, e perde-o de vista.
Seu Valdecir não cochilou neste dia. Fitava-me com olhos ávidos. Mas esperou, paciente, que eu fizesse o meu rito de garimpagem. Estava diferente, como que vivo. Quando enfim sentei, ele apontou para um livro na estante. Disse-me, como quem conta a boa nova a um infiel:
– Deixaram algo para você nele. Abra.
Abri o livro. Havia um bilhete com os seguintes dizeres:
“Caro ilustre desconhecido. Não é curiosa a vida? Como, numa cidade mediana, que conta com apenas dois sebos anônimos, e poucos locais para sair, nós nunca nos esbarramos?! Soube que você não acredita em minha existência. Acha que é coisa da cabeça dos velhos donos de sebos. Há quem acredite em coincidências. Eu não. Nós é que ainda não coincidimos. Mas, nessa vida, tudo pode acontecer. Basta ser.
De sua amiga desconhecida,
…
Oculto o nome da moça, mas não olvido. Já sobre o nosso encontro, ele se deu num ambiente muito diferente. Isto fica para ser contado numa próxima oportunidade.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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