“… o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem do avesso. Solto por si cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum – é o que digo”.
(Riobaldo, no Grande Sertão Veredas)
Às vésperas das eleições de 2018, escrevi aqui que o voto era como o vinho: revelava o homem. A afirmação, claro, tinha como referência a máxima atribuída a Caio Plínio, mais conhecido como Plínio, o Velho, “in vino veritas”, no vinho, a verdade, em bom português. Com a expressão os antigos romanos queriam dizer que as pessoas, sob o efeito da bebida, perdiam a vergonha – e se revelavam.
Havia na minha afirmação, por óbvio, uma certa dose de indignação com as chances do então candidato a presidente Jair Bolsonaro vencer a disputa no segundo turno com Fernando Haddad, o que se confirmaria pouco depois de publicado o meu texto.
Argumentava, à época, que não me parecia aceitável que pessoas esclarecidas, homens de bem, optassem por votar num candidato cuja vida pregressa havia sido pontuada por ilícitos, assumida vocação para a violência, envolvimento comprovado com milícias e incontáveis atitudes ofensivas contra mulheres e LGBTQIA+.
Nem me reportei, por lapso de memória, ao me sentar diante do computador, que o candidato fizera pouco antes apologia a torturadores, e falara aos quatro cantos ser um inimigo confesso da democracia e do Estado Democrático de Direito.
Decorridos três anos e seis meses do pior governo de que se tem notícia no país, confirmando-se tudo aquilo que me parecia uma obviedade, volto ao tema, e o faço com a motivação de reafirmar as minhas palavras naquele decisivo momento da vida nacional. Sim, o voto, como o vinho, revela o homem.
Assim como o mapa de nossas preferências em cinema, em música, em literatura sempre dá aos outros e a nós mesmos uma boa imagem do que somos (repito de cor palavras do respeitado poeta e ensaísta Italo Moriconi, em ensaio muito conhecido), também as nossas escolhas políticas traçam um perfil psicológico e moral do que somos. Insisto: como o vinho, o voto revela o homem.
A depender de sua escolha, coisa de resto natural numa democracia, pode-se concluir como a pessoa pensa a economia, a saúde, de que forma se coloca diante dos problemas da sociedade e o que pretende para o seu futuro e dos outros; se respeita ou não as diferenças de raça, de gênero, o que entende por justiça, se é um ser pacífico ou afeito aos atos de violência, se valoriza a democracia e se é capaz de defendê-la como um bem precioso, a ser preservado contra as investidas de políticos autoritários e de militares inescrupulosos, oportunistas e reacionários. Em resumo: qual o sentido ético de sua conduta social.
Numa democracia, é natural que se façam escolhas conflitantes, que se vote naquele candidato que melhor represente suas ideias sobre a vida em sociedade no que diz respeito à economia, à saúde, à educação, à segurança, às liberdades civis, à moradia, ao lazer e outras coisas mais. Esse voto é, assim, em metáfora, o vinho que dirá de você, revelando-o aos outros e a si próprio.
Se você votou em Bolsonaro, por exemplo, e continua a fazê-lo nas circunstâncias atuais, depois de todas as atrocidades cometidas por ele e seus apaniguados, tome tento, que dentro de você, numa ou noutra medida, pode habitar um inimigo da democracia, um homofóbico, um machista, um miliciano enrustido…
Quem sabe, e não são raros os casos conhecidos, possa habitar dentro de você, silenciado a custo, contido pelas forças do superego, um serial killer, desses que se insinuam nas redes sociais fazendo arminhas com o polegar e o indicador.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
0 comentários