Sentada numa cadeira de ‘couro’, com vestido florido bem estampado, de lenço na cabeça e sua risada icônica, foi assim que dona Neci recebeu nossa reportagem, na manhã desta sexta-feira, 10, para uma conversa bem descontraída na casa dela, no Bairro Fomento. A prosa foi regada por um café feito na hora, num cenário bem rústico, bonito, cercado de dezenas de cactos, as mais diferentes espécies. O gosto pela planta, segundo ela, é que representa a resistência do povo nordestino. O objetivo da visita foi extrair da alegre senhora, além dos causos, simpatias realizadas nesse período de festejos juninos.
Além das comemorações religiosas, dos festivais de quadrilhas, culinária, entre outras características dessa época, as simpatias, ou superstições também então inseridas nas tradições populares. Uma das crenças tem como santo de devoção Santo Antônio, como é conhecido também por ser ‘casamenteiro’. “É tiro e queda. Eu fiz duas simpatias pra conquistar o amor da minha vida, Luiz Alves, e consegui. Fiz a da bananeira e pra amarrar bem amarrado coloquei Santo Antônio de cabeça pra baixo. Só tirei ele do copo com água depois que casei. Olhe! Que não demorou muito, viu”, contou entre uma gaitada e outra, explicando como são feitas as simpatias. “O período tem que ser agora nesse mês de junho. Na noite do dia 23, a pessoa pega uma faca virgem, nova nunca usada, enfia na bananeira, até o talo. No outro dia vai lá tirar a faca e espia que tem uma letra, a inicial do nome do futuro amor. Eu fiz e deu certo. Tem que ir ainda pra festa de São João que seu amor vai tá lá. Com um punhado de sal na mão, rsrsrs ”, contou.
E para segurar bem o amado, Neci disse que fez a simpatia com a imagem do santo casamenteiro. Ela explica como é feita. “Primeiro a gente tira o menino do santo, esconde dele. Pega um copo com água, coloca o santo de cabeça para baixo. Só tira depois que conseguir o que deseja. Também deu certo, pedi para casar com meu amor. Casei, só nos separamos quando Deus o levou”, acrescentou Neci.
Em meio a essas tradições populares, muito comum no Nordeste brasileiro, que ressurgem nesse período junino, a atriz Betânia Lopes usou sua personagem Neci para contar esses causos. Para Betânia, a arte tem esse dom mágico, de brincar com lúdico, informar e formar as pessoas. E Neci foi um desses presentes que ela ganhou nesses anos de vida dedicada à arte. Personagem essa também que dá nome à peça homônima, um dos novos espetáculos da Cia Ortaet de Teatro, que direção de José Filho, assistência de direção Aldenir Martins, e interpretação da Betânia Lopes.
Oralidade
De acordo com José Filho, o espetáculo Neci nasceu ancorado na oralidade, que conta a história de Neci, uma senhora de quase 80 anos de idade que, ao revirar seu baú de memórias, problematiza questões do presente, tais como racismo, desrespeito com idoso, machismo e
homofobia. O processo se deu a partir de uma pesquisa realizada pela atriz Betânia Lopes, e
de conversas com uma senhora chamada Neci, residente numa comunidade rural chamada
Barroso II, em Quixelô, sua cidade natal. “A relação que Neci estabelece com a velhice não é de aprisionamento, mas de total liberdade para experimentar as descobertas que essa etapa da vida lhe propõe, sem culpas, sem medos, sem ansiedades e sem enxergar o mundo com olhar conservador e/ou acusador. Neci trouxe à tona suas memórias e algumas impressões sobre cada um destes assuntos que foram abordados, enquanto a atriz Betânia escutava e refletia sobre a ação de envelhecer”, disse.
Ainda de acordo com o diretor, na sala de ensaio, a dramaturgia foi sendo elaborada por meio do material coletado e vivenciado pela atriz, as memórias de Neci, as memórias da própria Betânia (atriz), as de Aldenir (dramaturga) e de José Filho, diretor. “Em meio a um causo e outro, a gente ia atravessando a narrativa com essas memórias pessoais, através de uma costura sensível e cuidadosa que buscasse não silenciar a senhora Neci, mas que também fossem acrescidas temáticas relevantes nos dias atuais, que são comuns nos outros trabalhos da companhia”, explicou.
Perfil
Atriz desde 1998, atuando principalmente nas artes cênicas da área de teatro e circo e como narradora de história. Fez parte da Trupe Locomotiva de Teatro (2000) e Cia Ortaet de Teatro participando como atriz e pesquisadora. Atualmente circula com o espetáculo “Neci”. Formada na cena do audiovisual através da Em Cena Escola de Atores, atuou como atriz na novela “O Velho Chico” da Rede Globo de Televisão, participou dos longa metragens: “O valor do tesouro perdido” e “Oxe”. Foi atriz nos curta metragens “Marco”, “A coroa de vidro” e “A casa da vovó”. Atualmente trabalha na Prefeitura Municipal de Iguatu como facilitadora de artes na Secretaria de Cultura e Turismo. Formada em Licenciatura Plena em História.
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