Hoje, ao chegar ao final desta jornada, já não tenho mais dúvida: os negros brasileiros, tanto quantos os indígenas, foram e continuam [sendo] vítimas de um processo sistemático de genocídio.
A jornada a que se refere Laurentino Gomes é a conclusão de sua bela trilogia da escravidão que ora encerra com a publicação do terceiro e último volume, “Da Independência do Brasil à Lei Áurea”, embasando-se em duas definições clássicas de ‘genocídio’ apresentadas por Abdias Nascimento em “O genocídio do negro brasileiro”.
Li o livro, a exemplo do que fiz com os dois primeiros volumes, com o cuidado que pedem do leitor os grandes livros, e posso afirmar: de forma definitiva, Laurentino Gomes entra para o sagrado grupo dos autores obrigatórios, confirmando-se como um pesquisador criterioso, ao lado de ser, hoje, um dos melhores textos do jornalismo historiográfico brasileiro. Aí, por certo, reside o motivo de ser lido à solta, sem o peso das narrativas tradicionais do gênero, transitando com a mesma desenvoltura entre a informação propriamente dita e a análise crítica, jamais perdendo o senso da medida, ainda quando deixa clara a sua revolta diante do material pesquisado.
Voltemos às definições de genocídio adotadas por ele.
A primeira, do Webster’s Third New International Dictionary of the English Language: O uso de medidas deliberadas e sistemáticas (como morte, injúria corporal e mental, impossíveis condições de vida, prevenção de nascimento) calculadas para o extermínio de um grupo racial, político ou cultural ou para destruir a língua, a religião ou a cultura de um grupo.
A segunda, do Dicionário escolar do professor, organizada por Francisco da Silveira Bueno, em edição do Ministério da Educação e Cultura, de 1963: Recusa do direito de existência a grupos humanos inteiros, pela exterminação de seus indivíduos, desintegração de suas instituições políticas, sociais, culturais, linguísticas e de seus sentimentos nacionais e religiosos.
Se a palavra fora utilizada com impropriedade quando da morte, por descaso do governo, de algo que se aproximava então dos 250 mil brasileiros vitimados pela Covid-19, o livro de Laurentino Gomes a retoma com absoluta pertinência em relação ao que se vê hoje praticado no país contra negros e indígenas.
Valho-me, aqui, do próprio jornalista e historiador para justificar o que afirmo acima: “… o genocídio nem sempre se resume ao extermínio físico de um determinado grupamento humano. Envolve também aspectos mais sutis de sua identidade, como a memória, a cultura, a língua, as crenças religiosas, a possibilidade de sobreviver e prosperar, de realizar os seus talentos e vocações, de ascender a postos de liderança, a empregos e posições de reconhecimento social”.
Se esse processo tem suas raízes no passado, o que é uma obviedade, não se pode negar que a situação se agravou de forma sistemática, digo mesmo programática, nos últimos três anos e meio, o que resultou num tipo de estímulo ao que o próprio Laurentino Gomes considera “comportamentos inaceitáveis de preconceito e intolerância, profundos e graves ao ponto de inviabilizar no futuro a própria existência do Brasil como um país decente, justo, ético e digno dos nossos sonhos”.
No ano em que se festeja o Bicentenário da Independência do Brasil, o terceiro volume da trilogia “Escravidão”, de Laurentino Gomes, vem a público como uma das melhores contribuições ao debate sobre o racismo estrutural que assola o país e reedita páginas vergonhosas de nossa história.
Ler, pois, o terceiro volume da trilogia “Escravidão”, há pouco disponível nas livrarias do país, é uma oportunidade imperdível de revisitar o tema e construir leituras mais consistentes sobre um problema que insiste em voltar, mesmo quando escondido no interdito do discurso oficial e em suas práticas de assumida intolerância contra pobres, negros e indígenas.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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