”…A vida é flor na corrente,
A vida é sopro suave,
A vida é estrela cadente,
Voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
Onda que o vento nos mares,
Uma após outra lançou,
A vida – pena caída
Da asa da ave ferida
De vale em vale impelida
A vida o vento levou!”
(João de Deus [1830-1896] em “Rosa do mundo”).
Certa feita, estava eu no Bar do ”X”, tomando aquela velha cerveja gelada, quando me sobreveio um pensamento (ou insight, chame como quiser) – desses que temos enquanto estamos sozinhos. Enfim, pensei sobre a morte dos amigos que ali frequentaram. Por questão de respeito, não citarei seus nomes, evidentemente.
O fato é que foram pessoas que fizeram o que tinham de fazer. É caso de existência dionisíaca que Nietzsche mencionara em um de seus livros (o livro é, salvo engano, ”A Visão Dionisíaca do Mundo”). Aquelas cadeiras vazias denunciavam que seus cativos frequentadores partiram para outra dimensão, ou para o nada absoluto, mas que, antes disso, entretanto, fizeram de suas existências o inexorável caos e prazer; díade não eliminável da condição humana.
Ali conheci pessoas de carne e osso. Pessoas que choraram os seus amores impossíveis; dormiram nas calçadas dos bares da vida; amaram e foram amados e mal-amados. Conheci deficientes físicos onde sua única limitação era a dependência de uma miserável e surrada muleta (outros, dependem horrivelmente de muletas metafísicas questionáveis – considero depreciável, mas não os condeno… cada um sabe de si).
Conheci senhores distintos e suas falácias e ”gabolices”. Vi, ali, casais apaixonados em ‘‘fim-de-festa’’; homossexuais que, aos olhos da puritana sociedade, compunham a mais baixa qualidade, e outros, se abastados, eram vistos como do mais alto respeito. O dinheiro retira todo e qualquer conduta considerada errada aos olhos dos ‘‘ícones da retidão’’.
Ouvi histórias de homens que foram rejeitados por outros homens e, assim, entregaram-se ao vício e a quem mais passasse por suas vidas. Esses gays do bar ”X” me fizeram acreditar em histórias de amor mais do que a as de muitos casais héteros. Naquele bar, fui aconselhador e aconselhado. Entre um copo e outro, muitos iam e viam. Sorriam, discutiam e, no fim, tudo terminava em galhofas.
Voltando aos mortos, cheguei à conclusão de que só os medíocres morrem, pois, para mim, medíocre é não viver a vida de acordo com as paixões desenfreadas do nosso particular instinto, desejo. Por mais estranho que se possa parecer, a felicidade pode estar em dormir na calçada ao invés de uma cama confortável. Alguns optam pelo ostracismo, e isso não é ridículo. Ridículo é condenar as ”opções’’ ou ‘’condições” de outrem, tratá-los mal mediante essa ou aquela situação. Se achar superior a quem aparenta estar em pior condição é o suprassumo da estultice humana.
Muitos continuarão existindo enquanto lembrarmos e falarmos deles com afeto. Muitos deixam de existir, mas nem todos morrem…
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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