— As suas más intenções me fizeram prenunciar um desfecho fatídico. Aos poucos, todos em volta também perceberam que tudo não passava de devaneios, alucinações, frenesis oriundos da minha mente perturbada e ferozmente provocada — confidenciou, ainda em prantos, por telefone, à sua melhor amiga.
O triênio no internato não lhe fizera bem. O mundo que ofereceram para Alice – completamente romântico – não condizia com a realidade vivida a duras penas. Induziram-na ao erro, sim, ao considerar a existência em essência do ”homem puramente bom.”
Pobre Alice. Aos 23 perdera a mãe, vítima de latrocínio. O pai, ébrio, meses depois, entregue totalmente à solidão e ao álcool, fora ceifado por um outro beberrão em seu carro desgovernado. E as madres continuaram a mentir: ”Foi porque Deus quis, Alice. Foi porque Deus quis”.
— Melhor seria tivesse ido viver num puteiro, Carla! Minha mãe teria orgulho de mim… Mas, por Deus… segui hinos e sinos ao invés de… de… sei lá o quê — disse, ainda confusa, a pobre moça, confessando-se à amiga, como fazia no internato com os raros padres que por lá pintavam.
Alice trazia pra si o julgo da culpa, alegando descaso e ausência para com os deveres de filha que, na sua ótica, se assim não tivesse agido, não estaria órfã de pai e mãe. O roubo seguido de morte, o álcool e o carro… Tudo, segundo a pobre menina, ter-se-ia evitado.
A sua aproximação com o clero levou-a, paradoxalmente, ao hades em terra. Seus pais, duas almas alvas, foram ceifados pelo anjo da morte no ano em que compraram sua casa própria e, com ela, um quartinho para Alice.
Agora a garota tem casa com quarto, mas sem pais e paz.
— Ele teve más intenções, Carla. Arquitetou tudo! Sei que, d’Ele, não quero mais nada. Trancafiou-me, levando-me ao embuste, naquele lugar sombrio, soturno e de músicas gregorianas detestáveis. Meu avô (que Deus ou sei lá quem o tenha) muito bem me orientou a abandonar a cruz do cristianismo, como ele o fizera em sua tenra idade — irada e ofegante, Alice continuava o confessionário.
Trancafiada no quarto, a jovem desventurada joga fora todos os santos, todos os crucifixos, a única bíblia, e, sem remorso ou temor, ateia fogo em tudo, num ritual que se assemelha a um pacto satânico. Seus olhos brilham e reluzem as chamas flamejantes até tudo que é sacro vire pó.
Embebida em uma estranha parcimônia, com uma corda estendida, Alice, que renegou Deus por culpa dos engodos dos homens, seduziu-se pelo subterrâneo dicotômico do celestial.
Alice, suada, acorda desse estranho pesadelo. Liga para Carla e pede para que a amiga procure um lugar digno, onde ela, com seu pai e mãe, pudesse, inseparavelmente, viver… Ali ela não ficaria mais um segundo sequer.
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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