Mara de Oliveira, licenciada em Biologia, foi acender velas e deixar água no cemitério do Patu, para as almas milagrosas, isso por uma graça alcançada. Pela quinta vez, ela participou da tradicional Caminhada da Seca, que acontece no segundo domingo de novembro, em Senador Pompeu, no sertão central cearense, que integra o território da Diocese de Iguatu.
Outros moradores de Iguatu participaram desse momento. Este ano a caminhada chegou à 40ª edição. O evento passou a acontecer depois que o padre italiano Albino Donati se juntou aos poucos romeiros que saíam em caminhada da sede até o cemitério do Patu, distante cerca de 3km.
A caminhada é em memória das vítimas do campo de concentração da seca de 1932, instalado naquela região. “Essa caminhada é fazer memória das pessoas que naquele espaço sofreram com a seca, passando fome, sede, com as injustiças sociais daquele período de 1932. É um momento de relembrar, e ao mesmo tempo de lançar olhares de como é que a gente pode se fazer presente e tornar essa história mais conhecida para que nem venha mais acontecer no Ceará, nem no Brasil e em qualquer lugar do mundo. Isso não cabe mais na nossa sociedade”, comentou Mara.
Segundo a bióloga, participar dessa caminhada é um ato em defesa da vida. “Para que as pessoas possam reconhecer a importância e a luta que a gente tem que fazer para que as políticas públicas aconteçam. E ao mesmo tempo é um ato que a gente faz em defesa das comunidades e das pessoas que precisam cada vez mais entender a importância que a gente precisa entender mais e estudar nossa história, do Ceará, do Brasil, e se fortalecer diante dessa situação de genocídio que aconteceu no nosso território”, disse.
História, fé e misticismo
E em meio a esse momento histórico e de fé, a pedagoga Eula Martins vê essa caminhada como um momento místico. “Eu já conhecia algumas histórias dos campos de concentração da seca no Ceará, e estar nessa romaria, nesse espaço é muito forte. Você vê as pessoas irem até lá no cemitério, ascender velas, ofertar pão e água para as pessoas que morreram de fome e sede, por causa de doenças. Essas pessoas que estavam nesses campos de concentração foram enterradas em valas comum. É muito forte. É um momento assim único, porque você vivencia ao mesmo tempo a história e ao mesmo tempo uma fé muito grande das pessoas. Elas vão rezar pelas almas das pessoas que já morreram, e ao mesmo tempo vão rezar pelos seus clamores de hoje”, contou.
Eula este ano também seguiu os ritos dos devotos. “Eu fiz o mesmo rito das pessoas. Eu rezei, ofertei um pouco de água, acendi velas pelas almas que morreram nos campos de concentração e também rezei pelas almas das pessoas que morreram na construção do açude de Lima Campos, foram muitas pessoas que morreram nesse mesmo ano, na seca de 32, em Icó. Então são lugares diferentes, pessoas diferentes, mas que morreram nessa mesma situação”, relembrou.
Martírio
Em meio ao percurso, idosos, jovens e até crianças seguiam pela estrada de terra, logo após deixar a cidade, até descalços. A caminhada este ano foi abençoada por chuva. “Ano passado, não tivemos a caminhada por conta da pandemia, mas choveu, e a celebração da missa foi na igreja matriz. Este ano, choveu, a caminhada aconteceu. Vimos uma multidão seguir movidos pela fé”, comentou o pároco de Senador Pompeu, padre Gil.
Maria Ilma de Macedo saiu de Iguatu, percorrendo quase 220 km até Senador Pompeu. Em caravana, ela também seguiu junto com milhares de pessoas os 3km a pé, pela primeira vez, até o cemitério do Patu, onde foi celebrada uma missa. “Eu participei pela primeira vez. Eu tinha um pouco de conhecimento sobre os mártires da seca, mas é diferente você estar na caminhada, no cemitério, no campo de concentração. Eu confesso que senti na pele o sofrimento, a vivência daquelas famílias, que chegaram ali em busca de sobrevivência, de trabalhar, alimentar seus filhos, mas foram brutalmente martirizados em 1932. Já se passaram 90 anos e há 40 anos vem sendo realizada essa homenagem para aquelas vítimas. Eu só tenho a agradecer a Deus por estar ali em companhia dos padres, freiras, leigos, do povo. Foi uma demonstração de uma luta de clamor, um grito de libertação pelos nossos direitos. E toda aquela injustiça que viveram nossos irmãos no campo de concentração, que isso não volte a acontecer. Só tenho a agradecer a Deus pela oportunidade. Foi uma experiência única e se Deus nos permitir irei novamente para homenagear aquelas almas santas. Eu tenho certeza que tudo que elas passaram diante daquele sofrimento, Deus teve compaixão daquele povo”, comentou Ilma.
10 mil mortos
A Caminhada da Seca surgiu de uma devoção popular e homenageia retirantes de 1932. O percurso que sai às 4h da manhã da paróquia Nossa Senhora das Dores, no centro da cidade, segue até a zona rural, no Patu, onde foi instalado um dos sete campos de Concentração no Ceará, até o cemitério das santas almas. Durante o percurso, as pessoas seguem entoando cânticos e rezando. Segundo o advogado, escritor e historiador Valdecy Alves, não é certo o número de vítimas noticiado ao longo dos tempos. São divulgadas pouco mais de 1.600 mortes naquele tempo em Senador Pompeu, mas estima-se que chegue aos 10 mil óbitos. Em 2021, pela lei estadual 17.698, a Caminhada da Seca entrou oficialmente para o roteiro turístico do Ceará. Entretanto, ainda não está registrada como um patrimônio imaterial da cultura e da história cearenses. Segundo a igreja, estima-se que mais de 5 mil pessoas participaram da caminhada este ano.
Campos de Concentração da Seca de 1932 no Ceará
Além de Senador Pompeu, Crato, Cariús, Ipu, Quixeramobim e Fortaleza, sendo na capital dois campos, somando os sete campos de concentração para conter os retirantes da Seca de 1932 instalados no Ceará. O campo de concentração de Senador Pompeu utilizou na época as instalações da companhia inglesa Norton Griffiths & Company – responsável pela construção do açude Patu. O Sítio Histórico do campo de concentração da Barragem do Patu, foi tombado como patrimônio municipal e federal.
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