Eu pinto-me porque muitas vezes estou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.
(Frida Khalo, 1907-1954)
Revejo em DVD o filme sobre Frida Khalo, com direção de Julie Taymor. Confesso que minha admiração pela artista mexicana mais se deve ao exemplo de coragem que nos legou, que à qualidade de sua obra, que não é pequena, fique isto claro. Um tipo de surrealismo, com perfume naïve que mais inquieta que surpreende, esteticamente falando. O que me impressiona, reafirmo, é a determinação por que Khalo orientou sua vida, marcada por tantos e tão grandes desafios, o que só reportando-me a sua biografia pode dar ao leitor a dimensão do que estou falando.
Teve poliomielite aos 6 anos, tinha uma perna menor que a outra. Entre 17 e 18 anos, sofreu um espantoso acidente de carro (em rigor, um ônibus) de que saiu dilacerada: uma barra de ferro do veículo entrou-lhe pelo pescoço e saiu pela vagina; teve a espinha destroçada, os ossos dos pés esmagados, a pélvis, algumas costelas quebradas, o ombro afundado, inúmeras outras fraturas por todo o corpo. Sobreviveu a tudo.
Submeteu-se a trinta cirurgias, teve uma perna amputada e, por um longo tempo, ficou dependurada por fios de aço, tolhida por coletes e praticamente vegetando. Abria os olhos, apenas, e, com mais dificuldade, a boca, por onde, através de uma sonda, davam-lhe de comer, para que não morresse de inanição. Apesar do sofrimento desumano, venceu todas as barreiras, acreditou na vida, casou, descasou, voltou a casar com o prestigiado pintor Diego Rivera. Levou uma vida sexual ativa, teve muitos amantes – Trótski, o revolucionário russo, um deles -, participou da atividade política, liderou movimentos feministas, proferiu palestras, rompeu preconceito de toda ordem e, num exercício de catarse que a tornou sublime, dedicou-se à pintura, de cuja paleta sairiam obras importantes e admiradas mundo afora.
Era uma mulher vaidosa, apesar de tudo, independente (no sentido mais profundo da palavra), vestia-se de forma alegre, gostava de cores vibrantes, contagiava a todos com suas excentricidades, amou homens e mulheres, fez e desfez, pintou e bordou. Seus quadros, porém, expressam o que pode existir de mais dramático na alma humana: abortos, sangue, fetos, pregos, nuvens, figuras com que sublima a dor mais lancinante.
Mais que sofrimento físico, no entanto, provou o gosto amargo das grandes decepções. No campo passional, suportou com dignidade e discreta elegância os desvios de personalidade de Rivera, um sedutor incurável, de quem queria tão-somente a lealdade que nunca teve. Rivera, entre incontáveis outros, teria um caso com Cristina Khalo, irmã de Frida, circunstância que a pintora mexicana jamais pôde esquecer.
Morreria aos 47 anos, não sem que pudesse dar ao conjunto de sua vasta obra um caráter conclusivo, verdadeiro registro artístico de uma trajetória comovente. Em se tratando de uma mulher incomum, como Frida Khalo, no entanto, para além das marcas deixadas por um destino brutalmente adverso, ficou o exemplo de alguém que conseguiu distinguir o essencial do aparente, o amor em vez do desespero, a vida em vez da morte.
Por isso, para citar o escritor peruano Vargas Llosa, que a exalta no livro Linguagem e Paixão, “em cada um dos seus quadros escutamos seu pulso, suas secreções, seus uivos e o tumulto sem freio de seu coração”.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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