Para Emídio de Sousa Neto, por cujas mãos entrei pela primeira vez num cinema.
Federico Fellini faria agora 103 anos. Cineasta do cinema de poesia, na perspectiva da conhecida teoria de Pier Paolo Pasolini, outro gênio italiano, Fellini legou-nos uma obra imorredoura, povoando de sonho e fantasia o imaginário de amantes da sétima arte mundo afora. Como ele, poucos terão compreendido com tamanha perfeição em termos cinematográficos, o que se convencionou chamar de ‘função estética da arte’, ao lado de saber com sutileza tirar da beleza fílmica a mensagem mais engajada contra a recorrente ameaça fascista na Itália do seu tempo (e tão contemporânea nossa), a exemplo do que fez em realizações emblemáticas como “Amarcord” (1973) e, alegoricamente, em “Ensaio de Orquestra” (1978). Sem esquecer, por óbvio, clássicos impagáveis como “Noites de Cabíria” (1957), “A Doce Vida” (1960) e “Oito e Meio” (1963), verdadeiros exemplos de que sondagem psicológica e crítica social podem andar juntas na mesma arte, como a dele, a um só tempo poderosa e bela. Falemos um pouco de “Amarcord”, que conta, em 2023, cinquenta anos.
Adolescente, ainda, assisti à obra-prima no Cine Alvorada, em Iguatu, faz isso pouco menos de cinquenta anos. Sem compreender toda a complexidade de sua estrutura narrativa, claro, calcada em recursos de linguagem intencionalmente afetados, na linha do que se pode destacar na construção de personagens caricatos e exemplarmente típicos de uma sociedade interiorana do norte da Itália, que em alguma medida projeta a essência do mundo profundo de qualquer país, confesso ter saído do cinema entre atordoado e dominado pelo que, mais tarde, saberia definir-se como emoção estética, isto que sentimos quando entramos em contato com a Beleza, uma experiência capaz de nos levar a um tipo de epifania sempre que diante de uma grande realização artística. Desde então, em termos amplos, minha vida se transformaria por completo.
O título do filme é uma alusão à tradução fonética da expressão “a m’arcord”, que, em dialeto regional da Romagna, significa “eu me lembro”. Pode-se concluir, desde já, que a obra tem seu fio condutor a partir do que mais tarde seria considerado o memorialismo felliniano, uma das muitas marcas do estilo cinematográfico de Federico Fellini.
Mas considerar que essas recordações são estritamente ligadas às experiências pessoais do autor, embora aceitável como exercício de exegese da obra, implicaria um tipo de reducionismo em nada condizente com a dimensão universalizante de “Amarcord”. É que o filme de Fellini extrapola as fronteiras do elemento localizador, explícito nos primeiros planos e na integridade narrativa, e redimensiona-se, ganha relevo em sua força de sentido e expressa com vigor e poesia o que resta de mais abrangente em termos sociais e humanos. Não é outra a razão por que o adolescente dos anos 1970, numa cidade do interior do Ceará, sem o saber definir em termos teóricos, deixaria o velho cinema da cidade absolutamente absorto pelo que, compreenderia mais tarde, diz ser o ‘milagre da Arte’.
O filme, desenhado com a habilidade do quadrinista que se antecipara ao realizador cinematográfico, põe em cena tipos humanos memoráveis. No momento em que sento à frente do computador para escrever a coluna de hoje, confesso desfilarem na retina dos meus olhos os seres adoráveis de que jamais pude esquecer: a prostituta Volpina, um tipo de Geni buarqueana de Rimini, cidade em que, supostamente, está ambientada a história, sempre no cio; o avô, com os braços revirando a cada aparição no quadro fílmico; o padre, curioso por saber detalhes das masturbações dos meninos no contraditório espaço do confessionário; a freirinha anã, misteriosamente capaz de convencer o tio Teo a descer da árvore em que se alojara atrás de uma “donna”, sem esquecer a professora de matemática, a sargenta fascista e um sem-número de tipos apaixonantes da vasta galeria de personagens fellinianas.
Por conta dos 50 anos de “Amarcord”, revi (o que faço quando menos a cada dois ou três anos) essa maravilha de Federico Fellini, de novo e sempre deslumbrado com a paleta de cores, a composição inconfundível do quadro, a movimentação da câmera em perfeita sintonia com a densidade dramática da cena, a montagem irregular de sequências, à maneira de um mosaico, o lirismo das situações com que o diretor traz à tela suas mais inapagáveis e superlativas lembranças da infância – tudo invariavelmente orientado por um rigoroso sentido estético, que, numa experiência sensorial para a qual não existe nome, faz escorrer poesia do que são apenas imagens, como sugere a etimologia, nascidas da imaginação inesgotável de um gênio da sétima arte.
“Amarcord” fez-me descobrir o Cinema.
Obrigado, Fellini!
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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