Órfãos da boa leitura

03/08/2019

Crônica

Cauby Fernandes*

Quem lê com frequência; quem é honesto intelectualmente logo chegará à conclusão de que estamos verdadeiramente sem qualquer apoio à alta cultura. Talvez os péssimos intelectuais de hoje devam render todo o seu tempo a apoiar, erroneamente, como cultura, tudo o que é popular. A cultura, pelo que se pode perceber, não tem mais valor em si. A arte não tem mais valor em si. Ou seja: se alguma publicação literária, encenação artística, peça teatral não traz em si qualquer reconhecimento com “o que é nosso”, com “o que é do povão”, o descaso se faz de imediato. Instantaneamente descartado, o que resta do que chamam de arte, é o que vemos: péssimas culturas que não passam de semiletradas; péssimos críticos; péssimo público. É o mau nacionalismo com o que é autóctone, não confundamos com o nacionalismo pelo apego e preservação da nação. Falo de um hermetismo malévolo, doentio e visceral. Estamos apinhados de péssima cultura, essa é que é a verdade.

Como resultado, não é raro encontrarmos imbecis néscios se achando aptos para comentar toda sorte de temáticas possíveis. Ora, como não seria diferente, se a geração do ‘‘não há saber mais, nem menos’’ acredita realmente que são sumidades outorgadas por essa leva medonha de pseudointelectuais? Antes, a desculpa para o acomodamento era a ditadura. Após o fim da mesma, o acomodamento permaneceu até o presente momento. E olha que incentivo do Estado não faltou! A verdade é que, durante os períodos de crise econômica na Grécia antiga, ou o vil comunismo na antiga URSS, onde os recursos e incentivos eram parcos em dado momento, nunca os intelectuais contribuíram tanto para a arte e a cultura mundial (não apenas local, onde, no Brasil, nem isso é possível de cogitar acontecer).

Infelizmente, em uma era de autoajudas, coach e similares, optamos por um Augusto Cury, um Paulo Coelho em detrimento de um Machado de Assis, um Graciliano Ramos, um Lima Barreto, por exemplo. Ignoramos a alta cultura para nos abraçarmos às literaturas rasas, triviais e simplesmente sem substância devida. E o que falar do asilo que demos aos grandes intelectuais europeus e os dos países outros que nos ofereceram as mais clássicas obras? Tiramos das prateleiras nomes como Dostoiévski, Allan Poe, Hemingway, e, em seus lugares, sequer ouso mencionar quais os estapafúrdios substitutos.

O diletantismo capotou na curva sinuosa da mediocridade, essa é que é a verdade, meu caro leitor. Restou-nos, ao que parece, até à nossa mãe, a filosofia, ler as pérolas prolixas do último “filosofinho” engomadinho que frequenta vez ou outra o “Encontro com Fátima Bernardes”. O beletrismo deu lugar ao mais ínfimo desejo pelo não desejo. Não há mais “eros” nas academias abarrotadas de pedantes. Observe a cena e constate, meu perspicaz remanescente admirador da boa leitura!

*Contista, cronista, desenhista e estudante universitário.

MAIS Notícias
Kafka e o seu inseto
Kafka e o seu inseto

‘‘Como é que uma coisa assim pode acometer um homem? Ainda ontem à noite estava tudo bem comigo, meus pais sabem disso, ou melhor: já ontem à noite eu tive um pequeno prenúncio. Eles deviam ter notado isso em mim.’’ - Franz Kafka, A metamorfose.   "A...

O último suspiro de um Boêmio”
O último suspiro de um Boêmio”

‘‘De algum modo, sentia que estava ficando meio maluco. Mas sempre me sentia assim. De qualquer forma, a insanidade é relativa. Quem estabelece a norma?’’ - Charles Bukowski   Era um dia de verão, e o sol se escondia atrás das nuvens cinzas. Eu me sentei em meu...

O caso da jovem Laura – Parte III (final)
O caso da jovem Laura – Parte III (final)

Liberando a jovem Laura do interrogatório e da retenção preventiva, tendo a sua mãe assinado um termo de responsabilidade para com a sua filha, o delegado notou uma certa semelhança entre a sua caligrafia e a caligrafia do tal Armando, suposto amante da jovem. De...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *