Foi bonita a festa, pá / Fiquei contente / Ainda guardo renitente / Um velho cravo para mim / Já murcharam tua festa, pá / Mas certamente / Esqueceram uma semente / Em algum canto de jardim / Sei que há léguas a nos separar / Tanto mar, tanto mar / Sei também quanto é preciso, pá / Navegar, navegar / Canta a primavera, pá / Cá estou carente / Manda novamente / Algum cheirinho de alecrim.
Maior artista brasileiro vivo, Chico Buarque pôde finalmente ter em mãos o prêmio Camões de Literatura. Orgulho brasileiro e reconhecido além-fronteiras pela genialidade do seu talento, o compositor, letrista, cantor, dramaturgo e romancista recebeu das mãos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva o diploma da premiação a que o ex-presidente JB, inimigo figadal da cultura, se negara assinar. Emocionado, Chico ouviu atentamente o que dizia Lula em seu pronunciamento: “Não podemos esquecer que o obscurantismo e a negação das artes também foram uma marca do totalitarismo e das ditaduras que censuraram o próprio Chico no Brasil e em Portugal”. No dia seguinte, Lula fez pronunciamento no Parlamento português a propósito da data que festejava os 49 anos da Revolução dos Cravos. Em “Quase Romance”, meu último livro, faço um “blend” ficcional-realista do acontecimento.
“Ironicamente, Ana deixara Portugal às vésperas da derrubada do governo salazarista de Marcello Caetano, ocorrida em 25 de abril de 1974. Por curioso, mais que os revolucionários que punham por terra o regime de inspiração fascista, conhecido como Estado Novo, vigente desde 1933, uma mulher simples, uma humilde empregada de um restaurante da rua Braancamp, que tantas vezes Ana visitara ao lado de Linda, entraria para a história: Celeste Martins Caeiro, era o seu nome. O bar, chamava-se “Franjinha” e fora inaugurado havia exatos doze meses. Para comemorar a data, a gerência decidira comprar uma grande quantidade de cravos vermelhos e brancos para distribuir com as clientes. Aos homens, num gesto de cortesia, seria servido um Porto.
Em face da grande mobilização popular que tomava conta das imediações do “Franjinha”, a gerência do restaurante resolvera manter suas portas fechadas. O que fazer, todavia, com tantos cravos? “Leve-os para casa!”, disse, na véspera, Isabel Falcão, a gerente, dirigindo-se aos empregados do restaurante. Abraçada a um molho de cravos vermelhos, Celeste tomou o metrô a caminho do Rossio, deparando, ao descer, nas proximidades do cubículo em que morava com a mãe e uma filha, no Chiado, com os tanques revolucionários. Aproximando-se de um deles, pergunta ao soldado o que se passa ali, ao que ele responde: “Vamos para o Carmo, derrubar Marcello Caetano. Isso é uma revolução!”. Pede um a Celeste um cigarro. Como não fumasse, ela oferta-lhe um cravo. Não tendo outra forma como reagir ao gesto doce da mulher, o soldado coloca o cravo no cano do fuzil. Celeste os ofereceu, em seguida, a outros soldados, que também os colocaram na ponta de suas armas. Os outros soldados do “Franjinha” que ali se encontravam, passaram a distribuir os seus cravos também. Em poucos minutos, eram centenas de fuzis ornamentados com as flores com que se pretendia tão-somente comemorar o primeiro aniversário de um restaurante.
Era a Revolução dos Cravos”.
(Quase Romance, Editora Sarau das Letras, 2021)
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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