Naiara Leonardo Araújo (Doutoranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina/ bolsista CAPES. Pesquisas nas áreas de interesse: cinema e história; cinema e educação; história de Iguatu)
Hoje convido o leitor a analisar comigo alguns dos eventos que precederam à publicação e circulação do jornal “A Luta” (abordado na matéria passada) e aos boatos sobre a passagem do “um dos “braços fortes” de Marighela” (vide primeira matéria publica), na cidade de Iguatu. Ambos, cópia do jornal e transcrição do depoimento de um informante, compunham um dossiê do Exército (e DOPS) sobre as atividades “subversivas” da igreja católica, no qual destacamos especificamente as ações da Diocese de Iguatu e dos padres Landim e Elmas, sob proteção do bispo Dom Mauro. De maneira geral, foi por meio da igreja católica que diversos movimentos, desmontados e proibidos pelos militares, obtiveram refúgio e resistiram ainda que na clandestinidade, a exemplo dos partidos de esquerda ou ainda das organizações camponesas. No entanto, é importante destacar que essa postura diverge daquela adotada às portas do golpe, em 1964, num momento em que no interior da própria igreja católica havia alas divergentes entre si no tocante a postura política (manifestadas ao longo dos debates internacionais promovidos no Concílio Vaticano II, entre os anos de 1962 e 1965). A igreja católica, que inicialmente se posicionou como aliada ao regime militar, vai mudar sua postura quando militantes católicos e membros eclesiásticos começam a ser perseguidos pelos militares, a partir de 1968. Assim, em maior ou menor escala, de Frei Betto, Dom Helder Câmara a Dom Mauro, os padres desenvolveram uma rede de apoio aos perseguidos políticos e aos trabalhadores rurais, enquanto denunciavam os atentados aos direitos humanos perpetrados pelo regime na forma de perseguições, ataques e torturas, dentre outros.
Em “A Luta”, Pe. Landim deixa transparecer seu viés político de esquerda e mesmo a sua simpatia pela luta armada ao afirmar “não tem outra alternativa senão lançar mão das armas e preparar-se para desencadear a luta”. Semelhante ao lema marxista, ele invoca os trabalhadores, os homens do campo, estudantes, intelectuais e artistas, as mães brasileiras a se organizarem e lutarem. Ao que parece, as ações dos padres Landim e Elmas pela zona rural de Iguatu se constituíram em importante refúgio para os encontros clandestinos daquele que fora o Sindicato de Trabalhadores Rurais, fechado pelo Exército em abril de 1964, com a alegação de que funcionava apenas como um agitador do espaço rural. A palavra “agitar” aparece em diversos momentos no relatório emitido pelo IV Exército, em 1964, no se qual destaca o trecho: “Com promessas de distribuição de terras, agitavam os trabalhadores do campo, conclamando-os a ingressarem no sindicato por eles orientado e a não entregarem as partes dos produtos agrícolas aos proprietários das terras (IV EXÉRCITO, 1964, p. 02)”. Aqui, recorro a dissertação de Helaine Saraiva Matos (2017), que traçou o panorama dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais (STR) no estado do Ceará, no período de 1950 a 1985. A autora destaca três períodos de criação dos STRs: 1) em 1963, anterior à ditadura, foram criadas 26 STRs, dentre eles o de Iguatu; 2) em 1971, 22 STRs; e 3) em 1972, apenas 19. Entre aqueles criados antes da ditadura militar e os implementados ao longo dos anos 70 uma nítida diferença quanto às suas motivações. O STR de Iguatu e os demais 25 criados em 1963 reivindicavam garantias de direitos trabalhistas e reforma agrária para os trabalhadores pautas que eram também encabeçadas pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Já os demais STRs, posteriores ao golpe, buscavam os benefícios assistencialistas do governo, na forma do FUNRURAL e PEBE aos sindicatos. Dentre os sujeitos envolvidos com o sindicato, quatro nomes são citados: Vicente Pompeu da Silva (preso em Fortaleza um dia após o golpe), Manoel Aeri Ferreira e Itamar Dantas (ambos, ditos pelo Exército como foragidos) e José Maria Vieira de Sousa (o encarregado de redigir as atas das reuniões é também dito pelo Exército como um “elemento” não agitador). Vicente Pompeu nasceu em Potengi, mas se mudou com a família para Iguatu quando tinha apenas 3 anos de idade. Ele e sua família vivia com “terra nas unhas” (CIOCARRI, 2015) e desde muito cedo teve de trabalhar como “meeiro” nas propriedades alheias. Sua atuação na mobilização dos camponeses teve início no ano de 1954 e até o ano de 1963 ele e seus companheiros já haviam fundado 29 Associações de Trabalhadores Rurais pelo Ceará. Além de ter sido eleito presidente da Associação dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas de Iguatu (posteriormente transformado em sindicato) também atuou como presidente da Federação das Associações de Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Estado do Ceará (FALTAC).
Ao que parece, a associação camponesa encabeçada por Pompeu em Iguatu era bastante ativa. Dentre suas ações destacam-se a reunião de aproximadamente 2 mil trabalhadores, em 1963, para a escolha dos participantes no Congresso da FALTAC; a confecção e distribuição de 1200 carteiras de trabalho (muitas delas terminaram destruídas pelos latifundiários, que viam toda aquela mobilização com maus olhos); e a luta na justiça pela indenização aos trabalhadores da lagoa do Barro Alto pela destruição de suas plantações – causada pela ação do latifundiário Antônio Vieira. Vale destacar que Iguatu estava entre uma das maiores produtoras de algodão do estado do Ceará e de banana do Brasil, conforme entrevista do líder comunista José Leandro transcrita por Matos. E acrescenta que a grande maioria dos camponeses trabalhavam na forma de “sujeição”, nome dado por eles próprios, três dias por semana para receber uma “mixaria” que só era paga quando bem quisessem.
Assim, após o golpe e nos olhos dos militares os STRs defendiam interesses muito próximos aos proferidos nos discursos do PCB e assim como este foi posto na clandestinidade os STRs precisavam ser desmobilizados. No restante da década, Iguatu se tornou uma espécie de “posto militar avançado”, um “acampamento general das tropas militares” de onde saiam exércitos (que provinham ainda do sertão pernambucano e do Piauí) para atacar os guerrilheiros concentrados no Cariri. A igreja católica vai se colocar, então, como esse espaço possível para continuar a luta pelos direitos trabalhistas e pelos direitos humanos.
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