Duas palavras sobre a poesia de Weimar Gomes dos Santos

10/06/2023

Quando decidiu intitular seu último livro de “Mentiras sinceras – poemas da madrugada”, mais que apenas adotar um procedimento de praxe, uma exigência editorial, Weimar Gomes dos Santos terá indicado possibilidades de leitura para o que sabemos ser a sua estreia como poeta. Ao contista, de extração clássica, em que se dão a ver os procedimentos recomendados por gente da estatura de Júlio Cortázar, já conhecíamos e admirávamos, pois que em pelo menos duas coletâneas brindara aos apreciadores da narrativa curta, no campo da ficção, com contos em que se observam, já nas primeiras frases, o que o escritor argentino chama de ‘obsessão do bicho’, esse elemento alucinante que faz o leitor “perder contato com a desbotada realidade que o rodeia, arrasá-lo numa submersão mais intensa e avassaladora”. Não à toa, Weimar Gomes dos Santos trazia de volta ao palco da narrativa curta o que, sem risco, poderíamos identificar como uma ressignificação do realismo fantástico. Não é pouca coisa, se considerarmos que seus livros foram mais que uma tentativa de iniciante e se prestaram a dar corpo, rapidamente, a sua notável presença na literatura cearense contemporânea.

Voltemos ao que nos interessa agora. Pois bem, ao escolher este título, “Mentiras sinceras – poemas da madrugada”, o poeta estreante enreda o leitor num paradoxo que já expõe sua disposição inventiva: explorar as dualidades do vasto mundo e desmistificar a ideia platônica da verdade absoluta, como, por sinal, deixa claro num dos mais belos poemas desta coletânea: “Na superfície, reluzente brilho, / Límpido verniz. / O reinado soberano de nossas verdades. / Entre elas, apertados espaços, / Onde encaixamos, sorrateiramente, / Todas as mentiras. /

Uma para cada ocasião”, bem como revelar um tempo cronológico a que terá dedicado a escritura de seus poemas, a madrugada. Nesse sentido, mais que reeditar um tipo de poema que teve, por exemplo, em Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa duas grandes representantes, o poeta dialoga com o que costuma pontuar a temática dos chamados “noturnos”, e que a primeira imortalizaria em versos notáveis: “Quem tem a coragem de perguntar, na noite imensa? / E que valem as árvores, as casas, / a chuva, o pequeno transeunte?” No caso de Weimar, aliás, melhor se aplicaria falar da segunda, “Meu pensamento em febre / É uma lâmpada acesa / a incendiar a noite”, porque é assim, com esse mesmo nível de inquieta insônia, que o poeta destas mentiras sinceras alimenta a natureza intencionalmente errática de suas reflexões: “Dias de melancolia… / As nuvens são de chumbo. / Temporais desabam, / Pássaros se desmancham, / O mundo silencia, / E almas se apavoram. / Em noites de profunda tristeza, / Até os meus retratos choram”.

Ao lado desse aspecto a ser destacado a partir do título da coletânea, deve-se acrescentar o que se dá aos olhos como uma marca do que tomo a liberdade de definir como a poética weimariana: a motivação de romper com as fronteiras entre o que se convencionou entender como elemento diferenciador entre prosa e poesia, assunto de resto já muito esmiuçado nos estudos da teoria literária, mas ainda merecedor de considerações que não se limitem ao estabelecido em termos acadêmicos. Em tempo, devo observar o que o próprio Weimar já me adiantara ao me confiar a apresentação do seu livro: “São textos muito simples, claros, quase prosa”, dizia-me por telefone. Se não faltava com a sinceridade, num exercício de autocrítica que revela o estudioso atento, no entanto, o poeta carregava na humildade, que é mesmo uma de suas marcas pessoais como escritor, ainda que seja evidente, por esse ângulo, que produz uma poesia descarnada, isenta de pieguices e sentimentalismos que não raro sobressaem na obra de estreantes, nomeadamente aqueles que deixam momentaneamente a narrativa de ficção, a que estão mais habituados, como é seu caso, e ousam trilhar os lodosos terrenos da poesia tal qual a compreende o senso comum em relação à prosa, até mesmo quando temos em mente alguns teóricos ditos modernos, a exemplo de Johannes Pfeiffer, para citarmos um clássico: “A poesia não é distração, mas concentração, não substituto da vida, mas iluminação do ser, não claridade do entendimento, mas verdade do sentimento”. Ora, dessa verdade Weimar Gomes dos Santos já se dissera desapegado, conforme observado na perspectiva do título de sua coletânea, bem como nos textos de Nietzsche, Fernando Pessoa e Octávio Paz que cita na folha de rosto do seu belo livro de estreia como poeta. A linguagem nele é mais referencial, as palavras destituídas da gelatina semântica usual numa poesia de feitio neorromântico que vem agradando a um certo leitor de poesia contemporânea. A força de sua arte é inegável pela forma como o poeta sabe lidar com a linguagem na construção do poema, como articula palavras e expressões umas com as outras, numa estruturação textual que resulta exemplarmente equilibrada do ponto de vista formal e conteudisticamente significativa. A esse propósito, ocorre-me citar Roland Barthes no incontornável “O Grau Zero da Escrita”: “A poesia é sempre diferente da prosa. Mas tal diferença não é de essência, é de quantidade.” Weimar elevou às alturas essa compreensão, e sua poesia é, por isso mesmo, límpida, enxuta, sem derramamentos ou emoções rasteiras, mas, invariavelmente, bem-sucedida como construto literário e como expressão de sua mundividência a um só tempo profunda e delicada, mesmo quando tem nas mãos a matéria dramática com que, sabemos, lida como profissional – e da qual tira em significativa proporção a emoção estética de que nasce a poesia pura, como a obter o leite da pedra. Aqui, aliás, reside uma das linhas de força do livro: sua poesia tem personalidade, é surpreendente, sedutora, como a fazer do leitor um cúmplice, ainda que seja do eu-lírico a voz predominante a deitar raízes nas “verdades” pessoais do poeta.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

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