Naiara Leonardo Araújo (Doutoranda em História Global pela Universidade Federal de Santa Catarina/ bolsista CAPES. Pesquisas nas áreas de interesse: cinema e história; cinema e educação; história de Iguatu)
Encontra-se disponível no acervo digital do Arquivo Nacional documentos do Serviço Nacional de Informações, da Agência de Fortaleza, de caráter confidencial, acerca da situação dos “Bolsões da seca” no estado do Ceará, referente ao ano de 1982. O presente informe analisa o segundo semestre do ano e a situação vivida por diversas cidades do estado com relação às sucessivas “invasões” de pessoas provindas dos distritos e campos, os flagelados, ocorridas logo após a desativação do “Plano Emergencial”, em fins do mês de junho. O objetivo: “buscar alimentos e/ou trabalho”. Ao longo do informe são citadas as seguintes cidades: Mauriti, Solonópole, Porteiras, Jardim, Brejo Santo, Icó, Iguatu, Baixio, Umari, Crateús, Pedra Branca, Cariús, Barro, Mombaça, Irauçuba, Tauá e Lavras da Mangabeira. Algumas delas registraram várias incursões, como é o caso de Iguatu que contou com 5 “invasões” num período de 14 de julho a 18 de agosto de 1982. Outras relataram que as “invasões” eram motivadas por falsos boatos de distribuição de mantimentos ou de “inscrição em obras de assistência aos flagelados”, como foi o caso da cidade de Solonópole e Icó.
Essa população camponesa geralmente invadiam e saqueavam os prédios da merenda escolar, postos de saúde, depósitos do Centro Social (usados para a distribuição de alimentos para as pessoas carentes), assim como o comércio local (Jardim e Icó, por exemplo), os mercados públicos ou ainda o “armazém do
prefeito” (Tauá). Cidades como Mombaça, Solonópole e Tauá cerraram as portas dos seus comércios em algumas
ocasiões, diante do medo de serem saqueados. Apesar das breves descrições a respeito de Iguatu (neste documento em específico), esse sentimento de medo e as reações policiais, também fizeram parte da movimentação urbana que se estendeu por anos subsequentes. No presente documento, as “invasões” que se deram na cidade Iguatu aparecem descritas da seguinte forma:“[…]
– IGUATU/CE (14 de julho 82) Cerca de 300 (trezentas) pessoas, oriundas dos distritos de QUIXELÔ, ALENCAR, SUASSURANA e QUIXOÁ. Os rurícolas avisaram que voltaria em busca de trabalho.
[…]
– IGUATU/CE (04 AGO 82 – 2ª vez) Cerca de 400 (quatrocentas) pessoas, oriundas do distrito de QUIXELÔ, saquearam o armazém da Merenda Escolar.
[…]
– IGUATU/CE (09 AGO 82 – 3ª vez) Cerca de 300 (trezentas) pessoas.
[…]
– IGUATU/CE (13 AGO 82 – 4ª vez)
Cerca de 300 (trezentas) pessoas. O prefeito anunciou que iria distribuir alimentos no distrito de ANTONICO, para onde afluíram 800 (oitocentas) pessoas, aproximadamente.
[…]
– IGUATU/CE (18 AGO 82 – 5ª vez)
Cerca de 250 (duzentas e cinquenta) pessoas tentaram novamente saquear o prédio da Merenda Escolar, só não o fazendo graças a interferência da polícia. […]”
Esse que devia ser o 4º ano consecutivo de seca, e agora desassistidos de política assistencial, é visto pelo governo do estado e órgão de segurança com preocupação. Para o chefe do escritório local da SUDENE, Cel. Elias Lima Barros, três fatores acirraram ainda mais os ânimos dos “rurícolas” e dificultaram o diálogo com o poder público. 1) O primeiro deles consistia na atuação dos políticos, especialmente do PDS que incitavam e por vezes organizam caminhões com o destino apenas de ida até a cidade. No relato sobre a cidade de Solonópole consta o seguinte: “As autoridades locais acreditam que haja interferência de lideranças políticas (PDS) na coordenação desses movimentos”. Em pleno ano eleitoral, o documento destaca os nomes do deputado federal Iranildo Pereira de Oliveira, da deputada estadual Maria Luiza Menezes Fontenele, de Rosa Maria Ferreira da Fonseca, descrita como “ativista em movimentos contestatórios”, e do padre Jean André Benevent, como pessoas que se faziam presentes ou coordenam as “manifestações rurícolas”. 2) a influência de “elementos de esquerda” ou ainda de pessoas que “procuram tirar proveito material”. O mesmo documento observa, por exemplo, a participação de um comerciante local, na cidade de Mauriti, José Morais de Oliveira, como líder no saque realizado em 1 de julho de 1982 ao Mercado Público, Posto de Saúde e armazém local da Cooperativa Agrícola Mista de Aurora Ltda. 3) o papel da televisão e do rádio, que divulgavam ascidades invadidas e as “futuras concentrações de flagelados”. Sobre a situação na cidade de Iguatu, é acrescentado ainda o seguinte informe: “[…]
4. Em IGUATU, segundo o Cmt da Cia/PM, Maj PM FRANCISCO HÉLIO MARTINS, os rurícolas, durante as invasões naqu
ela cidade, chegam por volta das 5 horas da manhã, em caminhões, procedentes de vários distritos. Citados caminhões desaparecem, obrigando a Prefeitura a providenciar o transporte dos invasores de retorno às suas casas. Durante a última invasão (18 AGO 82) o Pe. JOÃO FIRMINO DA CRUZ teve ativa participação frente aos rurícolas. O prefeito municipal, JOÃO ELMO MORENO, levou o fato ao conhecimento do bispo de IGUATU, D. JOSÉ MAURO RAMALHO DE ALARCON E SANTIAGO, que nenhuma providência adotou. O pessoal do escritório regional da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Ceará (EMATERCE), revelou que a situação de IGUATU não justifica, ainda, a ocorrência de saques, mas, apenas, de reivindicações para atendimento posterior.” Como se pode observar no relatório de caráter estadual, as consequências do período de estiagem eram sentidas não apenas pelos camponeses de Iguatu. A recorrência dos eventos, bem como os aspectos pontuando interferência de políticos e/ou de comerciantes que tentam tirar proveito da situação, dentre outros, desenham um cenário complexo quando associados à extinção de políticas assistenciais. E, apesar de o governo demonstrar alguma preocupação ao realizar um mapeamento e relatório da situação no estado, tais eventos serão ainda debatidos e comentados nos próximos anos.
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