Os que amam o futebol sabem: entrevista de jogador, há algum tempo, era coisa intraduzível, tamanha a falta de domínio da linguagem nas respostas, marcadas por titubeios, conjunções exaustivamente repetidas e total desconhecimento do léxico. De compreensível, a metáfora repetida por todos eles quando os resultados não eram bons: “É levantar a cabeça e partir pra próxima!”
Alguns entraram para o folclore e são impagáveis suas declarações em entrevistas, restaurantes, aviões etc. Garrincha, o genial Anjo das Pernas Tortas, deixou-nos verdadeiras pérolas, muitas delas imortalizadas no clássico de Ruy Castro sobre o ídolo de General Severiano. Há os que se tornaram vítimas da invencionice brasileira, protagonizando histórias advindas do imaginário popular ou raramente condizentes com a realidade dos fatos. É antológica, no segundo caso, o que disse o centroavante Claudiomiro, do Internacional de Porto Alegre, e que vi e ouvi com esses olhos e ouvidos que a terra há de comer: “Comigo ou sem migo o time joga do mesmo jeito!”
De uns tempos para cá, com a elevação do nível social dos atletas, muitos dos quais saídos até mesmo das universidades, o discurso desses jogadores foi crescendo em qualidade, tornando-se compreensíveis e, não raro, expressivos e elegantes. Aqui e além, citam pensadores, referem obras da literatura e do cinema. Esta a razão por que os espaços da televisão e dos noticiosos passaram a ser dominantemente ocupados por ex-jogadores. Alguns, a exemplo de Tostão e Afonsinho, ambos médicos, viriam a se destacar como cronistas de fino trato, revelando-se estilistas na produção de textos muitas vezes antológicos. Há, entre esses, os politizados, aqueles que não circunscrevem suas narrativas ao contexto esportivo. Falam com fluência sobre assuntos estranhos ao mundo da bola e leem com lucidez os acontecimentos da política, da vida em sociedade, do combate ao preconceito e na defesa da democracia. Sob este aspecto, é notável a presença de Casagrande, cuja participação na “democracia corinthiana” e outras lutas (inclusive contra a droga) podem ser vistas no maravilhoso documentário da GloboNews “Casão – Num Jogo Sem Regras”, criado e dirigido por Susanna Lira.
Hoje cedo (escrevo a coluna na quinta-feira 29), lendo os jornais, deparo, no Globo, com uma matéria interessantíssima com Tchê Tchê, médio-volante do Botafogo, líder absoluto do Brasileirão e sério candidato ao título do campeonato neste ano. Na série “Brasileirão no Divã”, curiosa ideia do jornal carioca, Danilo Neves, como é pouco conhecido, discorre em português escorreito e elegante sobre os mais variados temas, como utopias, militância política, desejos, depressão e outros temas antigamente impensáveis para ídolos do futebol brasileiro. Com simplicidade e exemplar lucidez, Tchê Tchê fala de suas pretensões: “Se eu paro e imagino algo, me vejo sendo campeão pelo Botafogo, construindo uma história bonita, ser lembrado de uma maneira boa”. Mas fala também dos riscos de insucesso e do seu maior medo: “Falhar com as pessoas que me apoiam todo dia: meu pai, minha mãe, esposa, filho. De resto (sic), já enfrentei muita coisa na vida para ter medo dentro e fora do campo. No futebol? Nada. Um jogo vai mal, outro bem, você se acostuma. Maior medo é envergonhá-los”.
Indagado sobre o processo de depressão de que foi acometido, revela consciência de que não há cura definitiva no seu caso, que as pressões exercidas sobre os atletas são imensas e recomenda a serenidade possível para os colegas, e, se for o caso, acompanhamento por um profissional. O jogador faz análise com a esposa, e considera importantes os resultados advindos das sessões de análise. Discorre com segurança sobre o racismo no Brasil e convoca à luta por direitos negados aos negros no país. Cita nomes de referência no combate ao preconceito racial, a exemplo de Martin Luther King, ativista negro pacifista, e Malcon X, cujos métodos eram mais reativos. Não à toa, os traz na coxa tatuados.
Comove o leitor ao citar um caso de racismo de que foi vítima no condomínio em que mora, na Barra, Rio de Janeiro: “Um senhor queria pegar o elevador sozinho. Eu estava atrasado para o treino e ele falou que preferia pegar o elevador só. Eu pedi licença e disse que ia entrar. Falei: pago o condomínio igual a você, não sei se você acha que sou funcionário do condomínio. Se quiser, espera o elevador. Estou acordando cedo para trabalhar, e acho que você também”.
Num país em que um ex-presidente exalta-se recorrentemente como “imbrochável”, é digno de aplauso o que se tem ouvido de jogadores como Thcê Tchê.
Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais
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