Acordei em meio a mais um amontoado de garrafas vazias. A claridade advinda da porta, denunciava que eu, irresponsável, não a fechara na noite anterior. Se alguém maleficiasse contra a minha vida, eu pereceria sem sequer tomar conta disto.
Após fechar a maldita porta, cujos raios solares causavam-me grande ojeriza, repúdio completo pela claridade, fui ao banheiro regurgitar o que não havia comido na noite anterior. Enquanto eu abraçava a porcelana, percebi que formigas trafegavam, em fila indiana, para o ralo enxuto.
Meu gato, neste instante, mia pedindo ração. Após o banho, que levou para o esgoto todas as incansáveis formigas, me visto e fumo um cigarro logo que encho a vasilha do meu inseparável parceiro felino. Vou para o minúsculo quintal refletir.
Tentei relembrar mentalmente o que fiz na noite anterior. Amnésia alcoólica é uma das circunstâncias mais desagradáveis pela qual passamos, não é mesmo, amigo parceiro de copo? Lembro-me de ter comprado as cervejas, claro, e os cigarros – duas carteiras. Recordo-me bem quando o meu primeiro amigo chegou. Estava agitado, eufórico por conta de uma boa notícia (que eu agora já não sei qual seria).
O segundo amigo, já não sei o horário de sua chegada, bem como também não sei a hora de sua partida… aliás, não sei que horas nenhum dos dois se foram. Apenas sei que estávamos ébrios e alegres por alguma razão (talvez a boa notícia do primeiro amigo).
Enquanto devaneio, alguém bate à porta. Decido não abri-la. No momento, sabia que ninguém que eu gostaria que viesse, viria nesse horário insólito. Só religiosos fervorosos e cobradores apareceriam neste horário; e ambos são igualmente por mim indesejados.
Quando sai do quintal, ao abrir a geladeira, percebi que em cima dela havia um bilhete. ‘‘Quem diabos se utiliza de bilhetes hoje em dia?’’, pensei enquanto abria a folha um pouco úmida devido estar próxima a um copo de cerveja quente esquecida ali.
O gosto amargo na minha boca era horrível, mas o teor da carta fez eu esquecê-lo por um curto período. O conteúdo da epístola? Compartilho com o leitor:
‘‘Meu querido, enquanto você dormia pesadamente, resolvi escrever-lhe para relatar como me sinto em relação a você. Sei que encontrará esta carta quando fores saciar a sua sede oriunda de mais uma das tantas ressacas por você vividas. Ontem, após os seus amigos saírem, você também saiu e deixou-me aqui sozinha. Voltou perto das 3:00h e dormistes sem uma palavra me direcionar. Creio que já não somos os mesmos. Eu quero viver um dia de cada vez, somar, acrescentar; você, um dia a menos, um dia perdido, um dia jogado fora! Eu sou ‘‘mais um’’! Você é ‘‘menos um’’! E sabemos que + com – dá menos. Obrigado por tudo que fizestes por mim, inclusive, até mesmo o mal que fizestes apenas ao existir perto de mim, pois foi graças a isso que descobri que o problema é você, não eu. Mas amo-te, e se quiseres somar comigo, ainda dá tempo, meu querido. Fico na cidade até amanhã. Sabes onde me encontrar… Sei que não irá, mas, sabe lá Deus, ainda me resta uma gotícula de esperança, meu bem! Beba pra criar coragem, e venha salvar o pouco que sobrou, por favor!’’
Dobro o papel e o guardo no bolso. Penso nos seus olhos lindos e caridosos. Penso também no quão miserável de espírito sou eu, que desperdiço a vida dos outros e a minha própria. Todos têm um objetivo de vida, menos eu? Todos almejam o sucesso! Todos procuram um alguém para si. Todos vislumbram algo, menos eu? Eu nem mesmo quero me encontrar… nem encontrá-la. É só mais um dia… vai passar… Aliás, é só menos um dia…
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
0 comentários