Para minha amiga e médica Yara Talita
Nesta quarta e última matéria da série que analisa sobre o início da década de 1910 em Iguatu, aproveito para recapitular um pouco do debate traçado até aqui e finalizar com uma reflexão sobre o que foi a epidemia de varíola na cidade.
Como o leitor deve ter observado, apesar das sucessivas e sistemáticas ocorrências de secas, o ano de 1912 registra bom inverno mesmo com a paralisação dos serviços de trem devido às más condições de um trecho próximo a Iguatu. Por essa data a cidade também vem sofrendo transformações físicas e culturais como consequência da estação ferroviária – a construção de hospedarias, por exemplo, e o aumento no fluxo de pessoas que circulam ou pernoitam. Através desses trilhos também chegam o medo do conflito armado entre jagunços/romeiros e os praças que instalaram sua “base de enfrentamento” em Iguatu. Ondas de saques no comércio e confrontos armados estavam diretamente relacionados a esse embate, assim como à política do Cariri e do estado do Ceará, tendo Iguatu como campo de batalha.
Nesse cenário de medo, conflitos políticos e secas, outro elemento amedrontou ainda mais a vida do iguatuense no início dos anos 1910: as doenças, em especial a de varíola. Logo após o inverno, em 1913, encontra-se nas Mensagens do Governador para a Assembleia (ed. 3, p. 12) o seguinte trecho:
“[…] A variola não grassou de modo assustador. Alguns casos nesta capital, outros em Mondubim, Joazeiro e Iguatú, chamaram a attenção do governo. Fez-se a vaccinação em larga escala, sendo enviado para o interior um vaccinador para soccorrer as populações ameaçadas.
Os fócos foram promptamente extinctos. De Fevereiro a Abril foram vaccinadas na zona percorrida 2028 pessoas. Em Iguatú construiu-se um barracão para isolamento de variolosos, com capacidade para 60 enfermos.
E’ indispensavel construir um isolamento para variolosos, outro para pestosos e um desinfectorio.
[…]”
É importante destacar que as notícias sobre a varíola em Iguatu são registradas desde 1901, conforme se observa nos Relatórios dos Presidentes dos Estados (ed.1). No Lancêta, jornal de Medicina do Ceará, é ainda mais antigo, remonta a 1863. O tema aparece relacionado ainda a higiene, água potável e seca, aspectos vistos como importantes para se pensar sobre a saúde pública.
Nesse período, a tão escassa ciência médica no interior do estado convive com uma “medicina doméstica” que ensina receitas caseiras para curar ou prevenir a doença. Dentre essas receitas destacam-se:
Com o respaldo do Dr. Pietre, de Nice, “a levedura fresca de cerveja, tomada na dose de 5 a 6 colheres de sopa por dia” (jornal Patria, de 1 de junho de 1910, ed. 18). Com esse tratamento, segundo a referida matéria, as “postulas” secam e desaparecem a “suppuração” e a febre entre 6 e 8 dias.
Já na edição seguinte do mesmo jornal, a receita consiste na aplicação de infusão de flores de mamoeiro “masculo” (“colhe-se uma mancheia de flores frescas, colloca-se em uma vasilha impa, onde se entorna um copo mais ou menos de agua fervida e bem quente, deixa-se em infusão, junta-se um pouco de assucar para adoçar. Uma colher, das de sopa, de hora em hora para adultos e para crianças uma das de chá”). Em outra edição (n.90), agora de 13 de dezembro de 1911, eles recomendam a vacina “jenneriana” tanto para a varíola como para uma moléstia identificada nos estados de MG, BA e GO, chamada de alastrim, mas que boa parte da comunidade internacional julga ser a mesma doença.
Em 1912 (ed. 98), uma receita provinda do sul do país sugere o uso do “cremor de Tartato” como capaz de curar em 3 dias (“Uma onça de cremor de Tartaro dissolvida em ½ litro de agua quente, tomada aos poucos, com pequenos intervallos, eis o remedio infallivel, pode ser tomado tanto como curativo, como preservativo.”).
Mas entre o relatório presente nas Mensagens do Governador para a Assembleia, de 1913, e o jornal O Jornal, de 1916, pode-se imaginar ao menos de maneira superficial as possíveis ações sanitárias tomadas para combater a varíola em Iguatu e especialmente suas dificuldades. Na edição nº 9, de 29 de setembro de 1916, consta o seguinte trecho:
“Variola em Iguatú
[…]
Diz o Correio do Ceará que nada tem que ver que as telhas de zinco da cobertura do barracão de variolosos tenham sido adquiridas por fulano ou beltrano; mas devia querer ver que está accusando e censurando ao ilustre dr. Abdenago, unico inspector de hygiene que construiu naquella cidade, barracão coberto de zinco para recolher variolosos, facto tanto mais censuravel, na opinião do Correio, quanto podia ter sido adquirido pela mesma quantia despendida, mais de dois contos de réis uma casa fóra da cidade, relativamente boa para tal fim.
Ao dr. Abdenago, cumpre demonstrar ao Correio porque motivo deu preferencia as telhas de zinco ás de barro.
O tal barracão desappareceu logo depois de construido, com o roubo do zinco, lona, madeiras, etc., nada restando senão algumas telhas zincadas! […]”
O trecho assinala para, além do problema epidêmico vivido, os furtos e politicagens sobre a construção do “barracão” que devia servir para isolamento dos doentes. Ainda se questiona sobre a lavagem dos lençóis e roupas contaminadas juntamente com as demais peças, ou do convívio entre pessoas contaminadas e não contaminadas dentro do “barracão”, comprometendo assim as ações de combate. É possível que tais problemáticas fossem consequências da seca, dentre outros fatores. Mas somente em 1920 (jornal A Lucta. ed. 385, de 17 de novembro de 1920) é que se tem registro nos jornais de medidas como a proibição de alunos e operários nas atividades sem que estejam devidamente vacinados e com atestado de vacina.
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