Retrato na parede, mas como dói*

07/10/2023

Para se conhecer uma cidade é necessário viver nela três dias ou trinta anos. Ao final dos trinta anos, verifica-se que o julgamento após três dias é que é o bom. Ocorre-me pensar nas palavras de Jean Cocteau (1889-1923), no caminho de volta.

Debaixo de um calor de 40 graus à sombra, voltei a Iguatu para rever amigos e matar saudade da terrinha.

Infelizmente, o que ocorre comumente aos que deixam suas “aldeias” queridas em busca do desconhecido em outras paragens, deparei com uma cidade em que não me reconheço mais. E na qual não me faço reconhecer.

Se o céu, aos olhos cansados, ainda é o mais lindo, como afirmei em crônica antiga, desfigurou-se a paisagem, tomada de prédios feios onde, ainda há pouco, havia casarões com perfumes do estilo neocolonial, impondo-se, ao mesmo tempo, pela solenidade da grandeza e sobriedade dos traços.

Onde havia jardins bem cuidados e praças acolhedoras, como a nos fazer lembrar habitações de velhos cortiços, veem-se barracas mal levantadas em que se vendem salgados e guloseimas insalubres.

Aqui, não mais as calçadas sobre as quais se ia ao longe, sem o risco de escorregões e tropeços; acolá restos do que foram, um dia, árvores multidecenárias a convidar os andantes para dois dedos de prosa sob suas copas frondosas.

Onde se viam paralelepípedos de fino corte, agora restos de asfalto a castigar, impiedosamente, aqueles que ousam sair pelas ruas, dando-lhes de bandeja cinco graus a mais de calor escaldante. Hoje, apenas sobem dos rachões e buracos, poeira e fumaça, enquanto motos tomam de açoite as vias mal sinalizadas, – e os automóveis, ainda mais ameaçadores e mal educados, colocam em risco os que se atrevem a atravessar de um meio-fio a outro.

A poluição visual é alucinante: cones, correntes, cordas, autoritários e ilegais, a demarcar como propriedade privada o que é coisa pública.

Não mais as rodas de conversa à boquinha da noite; não mais o clima ameno, a brisa generosa, o farfalhar das folhas anunciando a chegada do Aracati, tão pontual e tão doce, como a cobrir de carinho toda a cidade.

O lugar em que nasci e que guardo na memória – morro de saudade todos os dias! – , decididamente, não existe mais. É retrato na parede, como quis o poeta, em poema célebre.

Mas como dói.

 

*Verso conhecido, de Carlos Drummond de Andrade.

 

 

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

MAIS Notícias
Eis a [velha] questão
Eis a [velha] questão

A semana que termina marca também o final da mais abjeta campanha política de que se tem notícia. Em São Paulo, mais importante cidade do país, durante debate em que se devia apresentar propostas de governo, discutir problemas da população e apontar alternativas de...

A política e a politicagem
A política e a politicagem

Fiz oito anos na antevéspera do golpe de Estado de 64. Àquela época, os jornais não circulavam nas cidades do interior, não havia tevê e as notícias chegavam até nós através do rádio. Como morássemos ao lado de Aluísio Filgueiras, velho comunista, num tempo em que ser...

DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES
DE POESIA E SUBJETIVAÇÕES

  Do poeta e compositor Cicero Braz, num gesto de gentileza que perpassa a grande amizade, vem-me o vídeo curioso: Erasmo Carlos conta um telefonema de Belchior rogando-lhe adiar a gravação da música “Paralelas”, para a qual diz ter escrito outro final, já...

0 comentários

Enviar um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *