Bêbado, pra variar, mal conseguia raciocinar direito sobre a condição a qual me encontrava. Estava deitado e o mundo parecia pesar miseravelmente sob minha débil cabeça. Mesmo em meio ao devaneio enganador, eu sabia o que deveria ou não fazer. Mas uma coisa é a prudência do bom senso, outra é o desejo, pai de toda estupidez humana. Sim, quando merdas acontecem, elas são sempre geradas, invariavelmente, pelo paterno desejo desenfreado.
Ocorreu-me a ‘‘brilhante’’ ideia: continuar bebendo! A fim de afogar os pensamentos tortuosos, bebi e fumei até cair…. aliás, pensava que cairia, mas não caí. Ao invés disso, a sede só aumentava, os pensamentos se intensificavam e o nada que era aquele dia se fez mais intenso, mais palpável. Lembrei-me de um amigo e sua máxima: ‘‘Sabe, amigo, o coração de um homem é como o convés de um navio: cheio de rachaduras.’’ E tal aforismo, como no dia em que o ouvi pela primeira vez, naquele momento, surtiu o mesmo efeito. A sensação de que somos demasiadamente vulneráveis e impotentes ante nós mesmos e os fatores externos a nós.
Tenho por certo de que já não faço o que quero, mas o que minha alma ordena, grita, de forma latente, mas que se faz, de quando em quando, emergir à superfície, como o leviatã bíblico ou como o leviatã de Hobbes. Trata-se de um pacto secreto, oriundo de desejos gerados no fundo do cerne, que se contrapõem à lucidez. É quando rasga-se o véu da sanidade e invade a vida, deixando um rastro de sentimentos bons e ruins. Um caos, um vórtice incontrolável, uma simbiose de desejos incongruentes, ainda que imbricados.
Nisso, sem querer, olho para o lado; vejo repousado no meu rack, um livro lido já há algum tempo. Ao abri-lo, uma página e uma sentença: ‘‘Eu ainda não tinha a sabedoria dos homens maduros, que sabem que, em matéria de suscetibilidade, as mulheres são como a igreja. Porque sempre pecamos, por-pensamento-por-palavra-por-ação-por-omissão, e porque é preciso saber pedir perdão mesmo quando se faz nada, pois não adianta se opor a um decreto divino.’’
O romancista francês de ‘‘O pianista da Estação’’ certamente fora anavalhado pelo sexo oposto; fora vítima de sua inquisição! Após constatar que nem mesmo os intelectuais estão a salvo da danação que que a vida e a mulher, entornei, com maior avidez, mais a mais copos goela abaixo… Afinal, nessas horas, só o álcool é capas de melhorar e piorar a situação ao mesmo tempo. E assim o fiz!
Fico com a sensação de que, não importando para onde eu vá, o desejo sempre aponta para a impossibilidade de ser impossível saciá-lo. Se no álcool, nas mulheres, na labuta, na atividade diletante… É algo como simplesmente estar fora da possibilidade de uma felicidade em sua plenitude. Apenas fagulhas, migalhas de momentos que, no máximo, são alegres, não exatamente felizes.
E volto a beber; é a única saída…
Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História
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