O Dostoiévski político – duas palavras

04/11/2023

“Pobreza não é defeito, e isto é uma verdade. […] Mas a miséria, meu caro senhor, a miséria é defeito. […] Por estar na miséria um indivíduo não é expulso a pauladas, mas varrido do convívio humano a vassouradas.”

(Marmieládov, em “Crime e castigo”)

 

Quando das comemorações dos duzentos anos de Dostoiévski, em 2022, tive a honra de proferir palestras, entrevistas e participar de lives que tinham como objeto da atenção, vida e obra do inigualável escritor russo. Em duas dessas ocasiões, que quero aqui destacar, as entrevistas do escritor e editor Clauder Arcanjo e do intelectual Tárik Cordas, vez e outra tive de discorrer sobre o caráter político da obra de Dostoiévski, o que, curiosamente, mereceu, no amplo debate mundo afora, evidente curiosidade.

Afinal, do ponto de vista ideológico, o que estaria por trás dos contos e romances do escritor? Que visada é possível perceber na forma como Dostoiévski trata o problema social no contexto de uma Rússia marcada por fortes conflitos nas relações de produção da época? Em que medida se deve “ler” a realidade do país a partir dos “humilhados e ofendidos” que povoam seus contos e romances? Até que ponto é adequado compreender o debate que propõe (ou a denúncia que articula) sob o olhar angustiado do “homem do subsolo” e do “homem do universo” (O Idiota), que constituem a base de pensamento e reflexão de suas narrativas carregadas de tensão e humanismo? Enfim, o que pensava politicamente o autor de “Crime e castigo”?

A propósito, é mesmo nesse romance extraordinário, publicado em 1866, ambientado em plena Rússia pós-reforma, que se pode deparar com a mais inconteste manifestação política de Dostoiévski, e no qual a narrativa estrutura-se com nítidas intenções de expor as mazelas do capitalismo em sua fase embrionária.

Não é muito dizer, como afirmei durante esses debates, que “Crime e castigo”, ao lado de ser uma obra monumental sobre o destino da humanidade, tecido a partir do drama existencial e filosófico do protagonista, Raskólnikov, é um romance sobre o capitalismo russo, e, por extensão, sobre o capitalismo em todos os países, uma vez que sua extensão de significados é a mesma, ontem, hoje e até quando esse modelo de sociedade continuar existindo em esfera dominante da economia mundial.

Como todo grande livro, “Crime e castigo” oferece ao leitor diferentes planos de compreensão. O primeiro, mais clarificado enquanto tessitura narrativa (em se tratando de Dostoiévski é recomendável que se evite a palavra “explícito”), depara-se com o problema do assassinato de duas mulheres por um jovem estudante universitário, e os desdobramentos de natureza psiquiátrica que o fato implica: já sob esse aspecto é magistral a sondagem da alma humana, seus conflitos individuais, o inferno de sua existência a expor os demônios interiores do homem. Ninguém, nenhum outro escritor, sob este ângulo, nem mesmo Shakespeare, grande analista da dúvida e do devaneio, foi tão fundo na abordagem filosófica do crime, o ser ou não ser que expõe as entranhas apodrecidas do “eu” em face de sua mais absoluta contradição.

Mas que outro lado da dimensão significativa do texto existe a desafiar seu leitor? A essa altura, é preciso passar de um plano de leitura a outro, desvendando o que representam as personagens centrais do romance, o que carregam de simbólico em sua elaboração como seres nascidos da imaginação do escritor: a velha usurária Aliena Ivánovna, Piotr Pietróvitch Lújin, noivo da irmã de Raskólnikov, e o próprio Raskólnikov, em torno de cuja figura orbitam as demais personagens de “Crime e castigo”.

Aliena Ivánovna, mais que a mulher assassinada, fato que permeia o drama existencial do assassino, num primeiro plano de leitura, é, no segundo, ao lado de Lújin, o elemento de que se vale o autor do romance para elevar às alturas sua denúncia dos males do capitalismo vigente, a deformidade moral por que se move, o “parasitismo” dos que enriquecem à custa da miséria alheia.

O capitalismo explorado como pano de fundo do romance, como se vê, é o da essência desse modelo de sociedade assentado na lógica do enriquecimento fácil, da exploração do homem pelo homem, na agiotagem da velha Aliena Ivánovna, cujas consequências espalham-se como bactérias num corpo infectado. A especulação e a rapinagem capitalistas, como evidencia Nikolai Tchirkóv, em livro notável sobre o estilo de Dostoiévski*, apoderam-se das pessoas pobres, contaminando-as de forma indelével e inevitável. Nesse sentido, é luminosa a descrição do cenário em que coexistem exploradores e explorados, estes mais que aqueles, comerciantes de ruas, taberneiros, vendedores de bugigangas, mercadorias de pouco valor, “essa rapinagem miúda” que faz o leitor brasileiro lembrar os romances de um Aluísio Azevedo ou de um Émile Zola.

Da primeira à última página, assim, “Crime e castigo” é um romance em que se confundem, com as tintas da genialidade, o mais profundo exame da psicologia humana, e a destemida denúncia social, a que se soma uma poderosa capacidade de construção de diálogo, tomando-se o termo em seu sentido de técnica narrativa, de vozes que se contrapõem, na construção do que se convencionou chamar de romance polifônico, desde os trabalhos definitivos de Mikhail Bakhtin no campo do marxismo e filosofia da linguagem. Talvez aí resida um vazio a ser preenchido, um estudo que examine o elemento teatral da obra de ficção de Dostoiévski e as forças de estilo que gravitam o componente central de sua estética desconcertante – e genial.

Mas a visão política de Dostoiévski, supostamente com a exceção do romance “Os Demônios”, cujas bases filosóficas extrapolam a discussão ideológica, reflete a irredutível defesa do homem em face de todo e qualquer tipo de exploração. Capitalista, inclusive.

 

*O Estilo de Dostoiévski, Editora 34, 2002.

 

Álder Teixeira é Mestre em literatura Brasileira e Doutor em Artes pela Universidade Federal de Minas Gerais

 

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