A escola ficava em frente a um galpão abandonado, no alto de uma ladeira. O ano eu já não lembro. Mas lembro do tempo. Fazia um calor doentio. Às vezes, durante a aula, eu exortava os alunos a terem cuidado com os sentimentos. “O calor mexe com os nossos sentimentos”, costumava dizer. Quando o calor era insuportável, mergulhava em meus devaneios:
“Vejam o que nos diz a literatura sobre o tempo. Crime e Castigo, Um lugar ao sol, o conto “Um sábado à tarde”… o que todos eles têm em comum? Começam descrevendo um calor insano e terminam em barbárie, crime e desolação”.
Claro que a inquietude dos alunos, agravada pela sensação térmica agonizante, não autorizava que eu compartilhasse tais pensamentos. Era como se eu estivesse falando comigo mesmo, advertindo a mim mesmo acerca dos perigos do tempo ruim.
Em fins de novembro, próximo ao encerramento do ano letivo, ocorreu o caso em questão. Estava revisando o conteúdo das finais quando ouvi, ao fundo da sala, um murmurar que logo foi crescendo: um misto de choro e gargalhadas.
Aprumei o ouvido para distinguir o que estava sendo dito. Uma espécie de coro repetia as palavras “molenga”, “pamonha”. Depois ouvi a palavra “mulherzinha”.
As palavras mais graves vinham da boca de uma menina e eram dirigidas ao próprio irmão. Perguntei o que estava ocorrendo e um aluno magricela levantou o braço, entusiasmado:
– Não está sabendo, tio? Tentaram passar o pai deles esta semana – dizia ele, apontando para o menino e a menina.
Como fiz uma cara e um gesto de interrogação, outro aluno tratou de acudir:
– Passar é matar, tio.
Pedi silêncio e dirigi-me à menina, uma loirinha de pele queimada pelo sol e que atendia por “lelinha”:
– Lelinha, o que está acontecendo e por que seu irmão está tremendo e chorando? – eu só então reparava o irmão.
A menina então contou, num tom que já não me sinto capaz de externar, numa espécie de frieza atroz, especialmente vindo de uma criança de onze anos, o que ocorreu em sua casa.
Três homens chegaram encapuzados e deram tiros na sala. Os dois irmãos e a mãe estavam num quarto próximo. Ao ver que o pai dos meninos não estava, bateram em retirada. Desde então o irmão, que todos apelidavam de “zezinho”, tremia e dizia palavras sem sentido. Num dado momento ele tapou os olhos. Notei que sua calça estava molhada. Houve silêncio.
Seguiu-se a isso um alarido em forma de vaias. E as continuavam a ricochetear: “Molenga”, “Pamonha”, “Mulherzinha”.
O caso não passou despercebido pela direção. Ao fim daquele ano fui chamado à coordenação. A mãe dos meninos estava presente. Insistia em tirar o menino da escola e deixar apenas a menina. Perguntada o porquê, arqueava os ombros e dizia, em tom de deboche: “O professor aqui sabe. O menino é bom, mas é fraco. Assusta fácil. Três, quatro tirinhos e ele já fica nervoso”.
No ano seguinte o calor não abrandou. As chuvas rareavam. Eu chegava na escola molhado de suor. Apagava a lousa e lembrava daquelas palavras – “Três, quatro tirinhos e ele já fica nervoso “.
Marcos Alexandre: Pai de Edgar, leitor, Professor de literatura e redação, cinéfilo e aspirante a escritor.
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