Preciso de uma cerveja!

16/12/2023

Era uma tarde quente de uma sexta-feira. Estava sedento por uma cerveja gelada, mas a dor de cabeça tornara-se um empecilho para satisfazer o meu desejo alcoólico. A minha mulher, que é, hoje, inimiga voraz da ideia de que eu beba durante a semana, recusou-se em atender ao meu pedido: ir até a mercearia mais próxima e trazer, assim, a saborosa ‘‘loira gelada’’ que minha garganta tanto anseia.

Maldita! Resolvo por uma roupa e ir eu mesmo comprar as cervejas. No caminho, que apesar de ser um trajeto curto, não impossibilitou que eu refletisse sobre a péssima ideia que era o casamento, a convivência. Pelo menos o é em uma boa parte do tempo. A cumplicidade que se diz ofertar em palavras, sob juras de amor, inicialmente, não se concretiza no cotidiano. Quem é ou já foi casado, sabe bem que essa é uma frustrante realidade.

Não se trata de pensamento catastrofista. É um fato na vida da maioria dos casais. Os amantes, com o passar dos tempos, ou se tornam amigos-irmãos ou se odeiam mutuamente. São inimigos morando na mesma casa. Dividindo o mesmo ambiente doentio e falido. Daí para traição, meu caro, é um pulo. É questão de tempo. É exatamente por isso que já me separei tantas vezes. Recuso-me a viver um relacionamento fadado ao fracasso. Abandono o barco antes de morrer afogado. Bem como respeito as que me deixaram. Foram prudentes e fizeram o que tinham de fazer, assim como eu.

Enquanto refletia, coincidentemente, encontrei um amigo no bar enquanto eu voltava para o meu apartamento. Acomodei a minha sacola de cervejas num recanto e sentei-me à mesa com o referido companheiro. Comentei sobre o que eu estava pensando concernente ao matrimônio e ele concordou prontamente. Ele aproveitou o pertinente tema e relatou-me que estava prestes a romper os laços com a sua senhora. Dei total apoio. Como já devo ter deixado transparecer, sou inimigo de relações mornas, moribundas, que nem-fedem-nem-cheiram.

Olhei para os olhos fundos do amigo com quem dividia aquela mesa. Seu rosto denunciava as torturas sentimentais pelas quais ele enfrentava diuturnamente, presumi. Era um corpo sem vida. Uma alma atribulada pelo aprisionamento conjugal. Pobre homem. Há muito não lembrava o homem alegre o boêmio que fora um dia. Hoje, bebe com a única finalidade: tentar esquecer, anestesiar-se da realidade da vida. Antes, ao contrário, bebia para comemorar a vida. Há homens que não nasceram para a vida a dois, nós bem sabíamos disso.

‘‘Sabe, amigo, talvez hoje não devêssemos voltar para nossas casas e malditas vidas’’, eu disse. ‘‘Talvez seja o caso de, num ato de intrepidez, como a romper os grilhões que nos prendem às nossas miseráveis vidas, retornar a ser o que éramos: dois solteirões irresponsáveis e felizes. Não faltam mulheres para cafajestes, pode ter certeza, meu caro.’’, complementei o meu pensamento.

Um sorriso brotou num dos recantos modestos da boca do meu amigo. Parecia o desabrochar de uma flor. Eu parecia ter-lhe oferecido a saída para a danação na qual se metera casando-se com aquela mulher intragável. Ele passou a sorver a cerveja com gosto. Parecia apreciá-la agora que eu parecia tê-lo salvado da vida claudicante a dois.

Cheguei ao meu lar dois dias depois. Uma dor de cabeça miserável, mas em paz. Uma cerveja! Preciso de uma cerveja!

 

Cauby Fernandes é contista, cronista, desenhista e acadêmico de História

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